"Babel e a sua Torre é um mito de uma actualidade dramática e mesmo trágica" Babel e o Pentecostes

Babel e o Pentecostes
Babel e o Pentecostes

"A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris – desmesura – que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da destruição"

"O mito é uma advertência eloquente contra o desígnio de dominação"

"No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel"

Quando, este Domingo, se fala do Espírito Santo e do Pentecostes, é preciso tomar consciência de que só se alcança a sua compreensão adequada, contrapondo o Pentecostes a Babel e à sua Torre, esse acontecimento mítico tão conhecido, descrito no livro primeiro da Bíblia, o Génesis. É um mito, mas o mito transporta consigo uma verdade fundamental, "dá que pensar", como escreveu o grande filósofo do século XX, Paul Ricoeur.

     Diz a Bíblia que Javé, ao ver a maldade dos homens sobre a Terra, maldade que não deixava de crescer, se arrependeu de ter criado o Homen e se sentiu magoado no seu coração. Por isso, mandou o dilúvio, mas renovou a sua aliança com Noé e com a criação inteira, aliança figurada, ainda que de forma ingénua, no arco-íris, unindo o Céu e a Terra. Mas, um dia, continua a narrativa do Génesis, os homens disseram: construamos uma cidade e uma Torre cujo ápice penetre nos céus. A Bíblia vê neste projecto uma iniciativa de arrogância e orgulho insensatos, aquela hybris – desmesura – que os gregos também condenavam, porque arrasta consigo a maldição e a catástrofe, o abismo da destruição. No meio da arrogância e da desmesura, os seres humanos, em vez de se compreenderem e unirem, guerreiam-se e matam-se nos horrores da barbárie. Aí está o sentido bíblico da confusão das línguas.

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Torre de Babel
Torre de Babel

Babel e a sua Torre é um mito de uma actualidade dramática e mesmo trágica. Note-se que em capítulos anteriores à narrativa da Torre de Babel, o livro do Génesis fala do plano de Deus que quer que a Humanidade cresça e se multiplique em «povos que de dispersaram por países e línguas, por famílias e nações». Assim, o que está em causa neste mito não é de modo nenhum a dispersão pela Terra nem a variedade das línguas, que constitui uma riqueza. O mito põe a nu e denuncia o imperialismo dominador de uns sobre os outros, na incapacidade do descentramento de si para colocar-se no lugar do outro e, no respeito pela alteridade insuprimível, entrar em diálogo mutuamente enriquecedor. O mito é uma advertência eloquente contra o desígnio de dominação.

     Precisamente em contraponto, noutro livro da Bíblia, Actos dos Apóstolos, narra-se a descida do Espírito Santo, no dia do Pentecostes. «De repente, ressoou, vindo do céu, um som comparável ao de forte rajada de vento, que encheu toda a casa. Viram então aparecer umas línguas, à maneira de fogo, que se iam dividindo, e poisou uma sobre cada um deles. Todos ficaram cheios do Espírito Santo e começaram a falar outras línguas, conforme o Espírito lhes inspirava que se exprimissem.»

Ao ouvir o ruído, a multidão acorreu e todos ficaram estupefactos, «pois cada um os ouvia falar na sua própria língua». Atónitos e maravilhados diziam: «Esses que estão a falar não são todos galileus? Que se passa então, para que cada um de nós os ouça falar na nossa língua materna? Partos, medos, elamitas, habitantes da Mesopotâmia, da Judeia e da Capadócia, do Ponto e da Ásia, da Frígia e da Panfília, do Egipto e das regiões da Líbia cirenaica, colonos de Roma, judeus e prosélitos, cretenses e árabes ouvimo-los anunciar, nas nossas línguas, as maravilhas de Deus!».

     No dia de Pentecostes, que deveria ser todos os dias, na sua intenção mais profunda —, e cada vez mais tomamos consciência disso — , quando se percebeu que o que tem de unir os seres humanos é a justiça, o amor, a solidariedade, a fraternidade, o respeito pela igualdade, os seres humanos, todos, voltaram a encontrar-se e entenderam-se. No Pentecostes, restabelece-se a unidade desfeita com a Torre de Babel. Trata-se, porém, da unidade na diferença e da diferença na unidade. O amor de Pentecostes une diferenças, sem uniformizar. E abre horizontes novos de esperança à Humanidade solidária.

     Na actual situação do mundo globalizado e mortalmente ameaçado, é urgência maior pensar numa governança global (não digo um Governo mundial, mas uma governança global), para que o império da força da lei ponha limites ao império da lei da força do mais forte — na presente situação de crise global, vários pólos do planeta se perfilam já com intenções de domínio imperial global — e, neste contexto, pensar no diálogo multicultural e inter-religioso, em ordem à paz, à justiça, a uma atitude nova de respeito e cuidado da Natureza, a nossa casa comum, a uma vida menos centrada no consumo imoderado, no ter, e mais no ser, nesse milagre que é ser, existir e conviver.

     Dada a presente crise global, dramática ou mesmo trágica, quando já sabemos que ou nos salvamos todos ou nos perdemos todos, penso que já se devia ter percebido que se impõe um novo macro-paradigma para o desenvolvimento e para as relações entre os povos, incluindo a sua relação com a Natureza. Assim, sejamos crentes ou não, é claro que isso implica uma conversão, um espírito novo, que só pode ser o Espírito Santo, espírito de verdade, de liberdade, de igualdade, de fraternidade, de alegria e paz.

Em toda a sua História, talvez nunca a Humanidade tenha estado numa crise tão grave como aquela que já se vive e se agrava cada vez mais. É preciso tomar consciência da ameaça de convulsões em cadeia e inclusivamente da morte global. A Humanidade pode correr o risco de cometer um suicídio colectivo.

      Relembro uma entrevista recente na qual um dos intelectuais mais influentes da atualidade, Yuval Noah Harari, referia o que qualquer um de nós, se não andar distraído, constata: «Somos insaciáveis. Não interessa o que tenhamos conseguido alcançar, queremos sempre mais. Se temos um milhão, queremos dois milhões, se temos dois milhões, queremos dez milhões. O mesmo em relação ao poder: nunca estamos satisfeitos com o que temos, porque, na verdade, não sabemos como traduzir esse poder em felicidade. Somos milhares de vezes mais poderosos do que éramos na Idade da Pedra, mas não somos significativamente mais felizes. Se não aprendermos a parar, a desacelerar, o mais provável é que nos destruamos a nós e a todo o ecossistema.»

Concordando com Harari, julgo que é preciso ir mais longe e mais fundo. Pascal escreveu que a constituição do ser humano mora ali algures entre o nada e o infinito (le rien et l´infini). Assim, compreendemos que, dada a dinâmica humana insaciável, a única verdadeira tentação, desde o princípio, como se escreve no Génesis, é querer “ser como Deus”. Por isso, a alternativa é esta: querer ser Deus através do orgulho e da dominação de tudo e de todos, construindo uma Torre de Babel até ao céu, ou acolhendo a graça que o Espírito Santo concede descendo sobre todos em Pentecostes.

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