"Onde está a ética?, onde está Deus?, gritam as vítimas" Experiências negativas de contraste, ética e religião

El mal inocente
El mal inocente

"No meio do horror, habita-o a esperança, que não morre, de uma humanidade boa, solidária e verdadeira"

"Nesta experiência radical, acessível a todos os homens e mulheres, encontra-se um duplo elemento: por um lado, a indignação e revolta inamovíveis; por outro, “uma abertura para uma outra situação, que constitui apelo radical ao nosso Sim"

"No mundo, não há provas constringentes da existência de Deus. Aliás, um deus demonstrável não seria Deus, mas pura criação da razão"

Numa história de mistura enigmática de bem e de mal, de alegria e de desgraça, de beleza e de terror, de sentido e de absurdo, o ser humano é convocado para o espanto, positivo e negativo. O ponto de arranque para a reflexão será sempre o assombro,  positivo e negativo, sendo este provocado concretamente pela massa incrível do sofrimento humano, e, mais imediatamente, pela memória irrecusável da dor infinda das vítimas inocentes. O Homem quer ser feliz e é infeliz. No meio do horror, habita-o a esperança, que não morre, de uma humanidade boa, solidária e verdadeira. Toda a filosofia e teologia que recusem reduzir-se a um mero exercício académico, repetitivo e inútil, hão-de referir-se sempre à reflexão crítica sobre as condições de possibilidade, objectivas e subjectivas, dessa esperança do  advento de uma humanidade finalmente reconciliada e livre.

     Perante um mundo onde 1.200 milhões de pessoas sobrevivem com 1 dólar por dia, outras 925 milhões passam fome, 114 milhões de crianças em idade escolar não têm escola (63 milhões são meninas), onde anualmente perdem a vida 11 milhões de menores de cinco anos com doenças tratáveis, onde milhões de pessoas têm de deixar a sua terra e deslocar-se por causa das alterações climáticas (secas e inundações catastróficas) e os horrores de guerras em curso, onde o fosso entre os escandalosamente ricos  e os pobres é cavado cada vez mais fundo, onde o aquecimento global e o armamento nuclear põem em perigo a própria sobrevivência  da Humanidade, onde a cultura tecnocrática reduz o Homem à unidimensionalidade, onde continua a discriminação da mulher e das minorias, onde cresce a experiência do niilismo, a consciência ergue-se indignada: o mundo não está em ordem e não pode continuar tal como está! 

Campaña en defensa del Papa: Yo con Francisco

El Mal inocente

 É concretamente nas experiências negativas de contraste que se aprende a distinção entre bem e mal e o que significa dignidade humana.   Como escreveu o célebre teólogo Edward Schillebeeckx, “o que experienciamos como realidade, o que diariamente, através da televisão e outros meios de comunicação social, vemos e ouvimos acerca desta realidade não está de modo nenhum ‘em ordem’; há algo que está radicalmente mal. Por isso, a experiência humana de sofrimento, maldade e infelicidade é fundamento e fonte de um Não fundamental, que as pessoas pronunciam sobre a facticidade do seu ser-no-mundo.”

Nesta experiência radical, acessível a todos os homens e mulheres, encontra-se um duplo elemento: por um lado, a indignação e revolta inamovíveis; por outro, “uma abertura para uma outra situação, que constitui apelo radical ao nosso Sim. Podemos designá-lo como um consentimento 'no desconhecido’, no que nem sequer é determinável com conteúdo positivo: um outro mundo melhor, que ainda não existe em parte alguma. Por outras palavras: na pura aceitação da possibilidade de melhorar o nosso mundo; abertura ao desconhecido e melhor”. Por um lado, um Não indestrutível, um veto radical ao mal; por outro, um Sim aberto a um mundo digno do Homem, um Sim que é mais forte do que o Não, pois é a condição de possibilidade da revolta e indignação contra a indignidade.

Estas experiências negativas de contraste constituem o núcleo da experiência ética, comum a crentes e não-crentes, e base para um esforço solidário na luta contra a injustiça e na construção de um mundo com rosto humano. Mas  “aqueles que acreditam em Deus preenchem religiosamente esta experiência fundamental, que é una, embora com dupla face. Então, o ‘Sim aberto’ recebe mais orientação e perfil. O fundamento disso não é tanto, pelo menos não imediatamente, a Transcendência do ‘divino’ (que é inexprimível, por assim dizer, anónimo, não-articulável) como (pelo menos para os cristãos) o rosto humano reconhecível dessa Transcendência, manifestada entre nós no homem Jesus, confessado como Cristo e Filho de Deus. Deste modo, para os cristãos, o lamento radical da Humanidade transforma-se numa esperança fundada. No núcleo mais íntimo da realidade, está presente um suspiro da compaixão, da misericórdia; os crentes vêem aí o nome de Deus. É assim a história dos cristãos”.

No mundo, não há provas constringentes da existência de Deus. Aliás, um deus demonstrável não seria Deus, mas pura criação da razão. Mas a finitude é ineliminável, e precisamente devido à finitude insuperável, a religiosidade surgirá sempre de novo na história. Outra vez  E. Schillebeeckx: “Para a fé, a finitude não-divina é precisamente o lugar em que o finito e o Infinito se tocam no mais fundo e é neste contacto profundo que se acende toda a religiosidade”. Por outro lado, o compromisso com o ser humano, na vivência mundana, é, concretamente na tradição cristã, não apenas ético, pois tem uma dimensão teológica.

Oración

O cristianismo vê na luta pela humanidade do Homem uma profunda dimensão religiosa latente, “que tem essencialmente a ver com a compreensão de fé de que a finitude não é abandonada à sua solidão, mas transportada pela presença absoluta e salvífica do Deus vivo.” O cristianismo contém em si um potencial inesgotável de libertação. Se historicamente também foi causa de opressão e alienação, isso deveu-se a uma traição a si mesmo.

     No confronto entre a ética e a esperança, pensando nas vítimas inocentes, Deus virá sempre à ideia, como viu a Escola Crítica de Frankfurt. Onde está a ética?, onde está Deus?, gritam as vítimas.              

Etiquetas

Volver arriba