"A fé não pode entregar-se à cegueira, abandonando a razão" O pecado original. Com uma excepção?
"O pecado original foi elaborado essencialmente por Santo Agostinho, com a finalidade de evitar a atribuição do mal a Deus… Esta concepção agostiniana teve pesadíssimas consequências no Ocidente e no mundo"
Aconteceu-me, há muitos, muitos anos —era ainda jovem—, que, no final de uma conferência, no período das perguntas, uma senhora me atirou: “Sempre é verdade o que dizem: o senhor nega dogmas da Igreja!” Pedi-lhe para dar exemplos. Ela: que tinha negado o dogma do pecado original.
Aí, perguntei-lhe se tinha filhos. E ela: “sim, tenho duas filhas”. Dei-lhe parabéns sinceros e desafiei-a a dizer-me se acreditava sinceramente que as duas filhas tinham sido geradas em pecado e que ela tinha andado nove meses de cada vez carregando com duas filhas em pecado dentro dela. Ela: “Eu?! Nem pense nisso! É claro que não”.
Fiquei então, mais uma vez, a saber que, frequentemente, há na religião o que se chama dissonância cognitiva: afirma-se uma coisa, mas realmente não se acredita nela, porque se pensa outra coisa. Aquela senhora, confrontada com a questão, viu claramente que não podia acreditar que uma criaturinha inocente, concebida com amor, tivesse sido gerada e tivesse nascido em pecado, um pecado de que não era autora nem culpada. Mas ao mesmo tempo acusava de heresia quem dissesse o contrário do que lhe ensinaram que devia dizer, sem pensar. Ora, a fé não pode entregar-se à cegueira, abandonando a razão.
O pecado original não se encontra na Bíblia. Segundo o exegeta Armindo Vaz, a “transgressão” mítica de Adão e Eva “não implica um juízo de ordem ética ou moral nem permite a sua interpretação como ‘pecado’, ‘falta’ ou desobediência moral”. Como foi possível essa interpretação moral, se, na lógica dos mitos de origem, a natureza humana ainda estava em processo de criação e as acções do casal primordial são precisamente para “complementar a criação da sua condição humana: ‘comer da árvore do conhecimento’ (aquisição do conhecimento), cobrir a nudez (aquisição da civilização), sentença divina, decreto de morte e expulsão (aquisição da condição de sofredor, mortal e trabalhador)”?
Já o filósofo Hegel tinha interpretado a saída do “paraíso terreal” como a passagem da animalidade à humanidade. O pecado original foi elaborado essencialmente por Santo Agostinho, com a finalidade de evitar a atribuição do mal a Deus. Para ele, foi com o pecado de Adão e Eva que veio ao mundo todo o mal, incluindo a morte, e, com esse pecado, transmitido de geração em geração, a humanidade toda tornou-se “massa condenada” ao inferno, do qual só alguns são libertados pela graça imerecida de Deus.
Esta concepção agostiniana teve pesadíssimas consequências no Ocidente e no mundo. Escreveu o filósofo cristão Paul Ricoeur: “Nunca se dirá suficientemente o mal que fez à cristandade a interpretação literal, melhor, historicista, do mito adâmico, ao levá-lo à profissão de uma história absurda e às especulações pseudorracionais sobre a transmissão quase biológica de uma culpabilidade quase jurídica da falta cometida por outro homem, castigado na noite dos tempos, algures, numa fase da evolução entre o Pitecantropo e o homem de Neanderthal.”
Santo Agostinho não hesitou em deixar cair no inferno as crianças que morriam sem baptismo, entrando assim no Ocidente uma concepção bárbara de Deus. Como foi possível conceber um Deus que teria castigado a Humanidade inteira com o calvário todo da História e o inferno por causa de um único pecado de seres humanos ainda no dealbar da consciência? E como poderia aceitar-se a condenação eterna de crianças inocentes, a não ser que recebessem o baptismo?
O limbo apareceu na Idade Média para a atenuar esta crueldade. Assim, as crianças sem baptismo ficavam privadas da visão de Deus, mas não eram condenadas ao inferno. Erguia-se, porém, legítima, a pergunta: não se trataria ainda de um castigo?, e como poderia Deus, infinitamente poderoso e bom, estar dependente, em ordem à salvação, de uma concha de água?
Já em 1984, o teólogo Joseph Ratzinger afirmara que o limbo era uma mera hipótese teológica. Mais tarde, já Papa Bento XVI, aprovou um documento de 41 páginas, preparado pela Comissão Teológica Internacional, que acabava com o limbo e abre as portas da salvação às crianças que morrem sem serem baptizadas.
A impressão geral que me ficava da religião nos tempos da catequese não era luminosa. Pelo contrário, tudo aquilo transmitia um mundo bastante tenebroso, a ideia de um Deus castigador e de nós sujeitos a um destino de submissão trágica. Os primeiros pais tinham pecado, Deus andava irado com a gente e Jesus sofria na cruz para ver se nos libertava. A alegria era um roubo e a palavra Evangelho, que quer dizer “notícia boa”, não pousava sobre nós.
O que infectava o cristianismo era precisamente a doutrina infausta do pecado original. Escreveu o célebre historiador católico Jean Delumeau, que ainda tive o privilégio de conhecer pessoalmente: “Não é exagerado afirmar que o debate sobre o pecado original, com os seus subprodutos – problemas da graça, do servo ou livre arbítrio, da predestinação --, se converteu (no período central do nosso estudo, isto é, do século XV ao século XVII) numa das principais preocupações da civilização ocidental, acabando por afectar toda a gente, desde os teólogos aos mais modestos aldeões. Chegou a afectar inclusivamente os índios americanos, que eram baptizados à pressa para que, ao morrerem, não se encontrassem com os seus antepassados no inferno. É muito difícil, hoje, compreender o lugar tão importante que o pecado original ocupou nos espíritos e em todos os níveis sociais. É um facto que o pecado original e as suas consequências ocuparam nos inícios da modernidade europeia o centro da cena mundial, sem dúvida muito atribulado.”
No entanto, repito, a doutrina do pecado original, no sentido estrito de um pecado transmitido e herdado, não se encontra na Bíblia. Jesus nunca se referiu a um pecado original.
Sim, na sua base, encontra-se fundamentalmente Santo Agostinho, a partir de um passo célebre da Carta de São Paulo aos Romanos, capítulo 5, versículo 12. Mas ele, que não sabia grego, seguiu a tradução latina: Adão, “no qual” todos pecaram, quando o original grego diz: “porque” todos pecaram. Ora, uma coisa é dizer que todos são pecadores e outra afirmar que todos pecaram em Adão, como a árvore fica infectada na raiz, de tal modo que todos nascem em pecado do qual só o baptismo os pode libertar. Santo Agostinho, como já ficou dito, deixava cair no inferno, mesmo que menos terrível, as crianças sem baptismo. Durante séculos, houve mães dramaticamente abaladas, porque os filhos morreram sem baptismo — eu ainda conheci algumas, que procurei vivamente consolar.
A Santo Agostinho serviu esta doutrina sobretudo para, convertido do maniqueísmo ao cristianismo, “explicar” o mal no mundo, que não podia vir do Deus criador bom.
"Adão e Eva não são personagens históricas. Depois, se eles ainda não sabiam, como diz o texto do Génesis, do bem e do mal, como podiam pecar?"
De facto, baseou-se numa exegese errada. E quem não sabe hoje que o que diz respeito a Adão e Eva e à queda é da ordem do mito? Adão e Eva não são personagens históricas. Depois, se eles ainda não sabiam, como diz o texto do Génesis, do bem e do mal, como podiam pecar? O que o texto diz é outra coisa, e fundamental: o que caracteriza o ser humano frente ao animal é a liberdade. O ser humano já não é um animal como os outros: tem auto-consciência, sabe de si como único – a nudez metafísica – e que é mortal...
Mas os estragos desta doutrina infausta foram e são incalculáveis, sobretudo a partir do acrescento de Santo Anselmo e a sua doutrina da retribuição: os primeiros pais cometeram uma ofensa infinita contra Deus e, assim, era necessária uma reparação infinita para uma dívida infinita que só o Deus-homem Jesus podia pagar na cruz.
Ficou então a ideia de um Deus por vezes monstruoso, sádico —em relação a esse Deus deve-se ser ateu—, que precisou da morte do Filho, inocente, para reconciliar-se com a Humanidade. Mas como era isso compatível com o Deus amor? Porque o pecado se transmitia pelo prazer do acto sexual, a sexualidade, o corpo e a mulher ficaram envenenados, numa situação dramática, se não trágica: era preciso continuar a gerar filhos — no limite, a actividade sexual só se legitimava para a procriação —, mas eles eram gerados em pecado e a mulher trazia o pecado dentro dela. Só houve uma excepção: Maria foi concebida sem a mancha do pecado original, excepção que dá lugar à festa da Imaculada Conceição, no dia 8 de Dezembro, com feriado nacional em Portugal. Esquece-se então que Nossa Senhora não é grande porque foi isenta do pecado original, que não há, é grande porque é a primeira cristã, aquela que acreditou no seu filho Jesus e no seu Evangelho, notícia boa e felicitante: Deus é bom, Pai-Mãe, que só quer a alegria, a felicidade e a plena realização de todos os seus filhos e filhas, que devem viver segundo essa dignidade, na fraternidade, na liberdade e no amor..., Jesus, inocente, não se acobardou e foi condenado à morte, foi crucificado, para dar testemunho da Verdade e do Amor, mas Deus não o abandonou: está vivo na plenitude da Vida, a Vida eterna...
"O único sentido do chamado pecado original só pode ser o de estar precavidos: todos são gerados e nascem sem pecado, mas num mundo e para um mundo onde já há pecado"
Porque é que o primeiro acto humano da História havia de ser o pecado, pecado original?Hoje, com a evolução, a contradição torna-se ainda maior: quem foram os “primeiros pais”, com tanta consciência, liberdade e poder de determinação da História? O único sentido do chamado pecado original só pode ser o de estar precavidos: todos são gerados e nascem sem pecado, mas num mundo e para um mundo onde já há pecado — pense-se nos horrores das guerras e da fome, na violência doméstica e nos abusos de toda a ordem, na estupidez, na imensa estupidez, na brutalidade da mentira e do ódio, num mundo que por vezes parece desmoronar-se... — e, por isso, precisamos de estar precavidos, pois podemos ser contaminados, como um não fumador que entra numa sala de fumadores tem de acautelar-se, já que pode ser contaminado pelo fumo...
De qualquer modo, o que São Paulo diz no passo célebre da Carta aos Romanos é uma mensagem de esperança: todos os seres humanos pecam, o pecado do ser humano é grande, mas o amor de Deus é maior. Infinito.