Oscar Romero: um santo para nossos tempos

Maria Clara Lucchetti Bingemer
15 ene 2019 - 16:36

A santidade pode acontecer sem direta e necessária conexão com a

moralidade, em especial dentro dos parâmetros casuísticos como tem sido concebida.

Juntamente com esta afirmação está a convicção de que a santidade não ocorre

necessariamente dentro dos cânones habituais de uma instituição religiosa. Trata-se

de uma transformação completa da pessoa, a qual pode dar-se em diferentes

circunstâncias.

Santo é alguém que tem o gênio de contemplar com atenção criativa a

realidade e o mundo,, e encontrar em sua experiência de Deus uma resposta original

às demandas e interpelações que seu momento histórico e social levanta. A santidade

é, pois, um processo vital, que inclui não apenas uma experiência religiosa, mas a

conecta com a ética e a práxis.

Há poucos dias o mundo recebeu com júbilo a notícia de que o Papa Francisco

canonizara – ou seja, proclamara santo da Igreja Católica – o arcebispo de San

Salvador, Oscar Arnulfo Romero. Pessoa discreta e moderada, recebera o episcopado

na expectativa de que se desempenharia dele da habitual forma discreta e modesta

que o caracterizava. E assim provavelmente seria a história de seu percurso

eclesiástico se não fosse alguém aberto ao Espírito que o animava. Quando viu com

seus olhos as mortes que ceifavam a vida de seu clero e seu povo, percebeu que não

podia apenas cumprir sua rotina de arcebispo. Tinha que falar.

E assim o tímido arcebispo denunciou as barbaridades que a violência fazia em

seu país, declarando-as contra a justiça, a paz e, sobretudo, contra o Evangelho de

Jesus. Suas homilias eram transmitidas por rádio e tonitruavam pelos quatro cantos de

seu país e para além dele. Os olhos do mundo voltaram-se para o pequeno país

oprimido que, graças à coragem profética do arcebispo, se fazia visível por toda parte.

As forças da violência e do mal que governavam o país não viram com bons

olhos a atuação de monsenhor Romero. Protestaram em El Salvador, em Roma e

onde mais puderam. Incomodava muito aquele arcebispo que teimava em não se

recolher à sacristia e insistia em ocupar o espaço público fazendo denúncias e

censurando os procedimentos da lei e da ordem.

Finalmente, Romero foi morto. Atravessou-lhe o coração uma bala disparada

por um atirador de elite. Estava no meio da celebração da missa e acabava de

consagrar o pão e o vinho que, transubstanciados no corpo e sangue de Jesus Cristo,

resignificaram sua morte. Era um mártir, ou seja, uma testemunha que foi até o fim na

confissão de fé do Reino anunciado por Jesus.

Na Igreja Antiga seria aclamado santo no minuto seguinte. O martírio era um

sinal mais do que claro para declarar alguém plenamente unido a Deus e fiel a seu

amor incondicional. Alguém que dá a vida pelos outros devido à fé que lhe anima a

vida é certamente santo tal como o entende a Igreja Católica.

No entanto, Romero foi assassinado em 1980 e apenas agora, em 2018

aconteceu sua canonização. Por que uma espera tão longa diante de uma santidade

tão evidente? Qual a razão da demora? Que dúvida poderia pairar sobre a vida

daquele homem que o povo salvadorenho, assim como todos os latino-americanos, já

cultuavam como santo e cuja vida inspirava outras vidas para além das fronteiras do

continente?

Pareceria que Romero não teria sido assassinado por ódio à fé. A razão de

sua morte não foi a defesa de uma formulação dogmática, ou de uma norma

moral. Foi, sim, a comunhão apaixonada com a dor dos outros, no caso de seu povo

que sofria perseguição e violência. Felizmente, o Papa Francisco entendeu que se

Romero não fora morto por ódio à fé, certamente o fora por seu exemplo heroico de

caridade. E no último dia 14 de outubro canonizou-o, declarando-o santo e mártir da

Igreja Católica.

Os santos têm em comum a experiência de que todas as graças e

conhecimentos a eles dados por Deus os direcionam misericordiosamente para o

sofrimento humano. Cada santo ou santa não quer estar separado das dores e

sofrimentos de seus contemporâneos, mas entrar em profunda solidariedade e

comunhão com eles. Sua sintonia com Deus os leva não a ensimesmar-se em seu

interior, mas a abrir olhos e ouvidos aos clamores da realidade, aos sofrimentos do

próximo, à realidade dolorosa do mundo. E é aí que a mística se encontra com a

prática da caridade e tem como fruto a santidade.

O sim que Oscar Romero disse a Deus teve início ali onde várias vezes a

teodiceia encontrou uma aporia e homens grandes e brilhantes como Albert Camus

não encontraram resposta a não ser a indignação e o antiteísmo: no sofrimento do

outro, sofrimento inocente e injusto que abraçou com paixão e compaixão.

Canonizando santos, a Igreja quer dar testemunho ao mundo de que aqueles

seus filhos viveram plenamente o ethos do amor e da intimidade com Deus e o serviço

dos outros. Assim aconteceu com Oscar Romero, que hoje pode ser invocado como

santo e cuja vida tornou o mundo mais humano e mais de acordo ao sonho do

Criador.

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