Pátria fraturada

Maria Clara Lucchetti Bingemer
10 may 2024 - 20:13

As eleições terminaram e o resultado foi reconhecido inclusive internacionalmente. Mas

aqui na Pátria amada esse reconhecimento se viu ameaçado desde o dia seguinte pelas

manifestações insólitas de grupos expressivos de pessoas que não aceitavam a derrota e

abraçavam caminhões, se reuniam sob chuva intensa diante dos quartéis, clamavam por seres

extra terrestres. Também rezavam. Desde terço até cantos carismáticos. De tudo havia para

sublinhar o soturno inconformismo com o resultado democrático das urnas.

Depois veio a festa da posse do candidato eleito. E metade do Brasil respirou. Não

apenas pelo acontecimento em si, mas pela beleza da diversidade do país sendo exposta sem

medo, acolhida, celebrada, cantada e dançada. Foi bonito, digno e confortador para os que ali

viam seu voto representado e respeitado. Pensavam que, enfim, iam acabar os dias tensos e

sombrios, com ameaças pairando constantemente por todos os lados e a frágil democracia

ainda em perigo. Agora era realidade. Tínhamos novo governo e toda a riqueza da nossa

diversidade estava representada nos muitos ministérios que prometiam erguer o Brasil do poço

profundo onde fora mergulhado nos últimos anos.

Mas veio o dia 8 de janeiro. Eu almoçava com uma amiga muito querida e festejava seu

aniversário. À mesa havia vitoriosos e derrotados nas urnas. Reinava, porém, respeito e

harmonia. Ao voltar para casa, recebi um telefonema da aniversariante: “Estão quebrando

Brasília. Liga a CBN.” Incrédula, liguei. E ouvi o que parecia impossível. Começaram a chegar as

notícias alarmantes e assustadoras. O Brasil depredando a si mesmo em uma violência sem

sentido nem propósito. As instituições agredidas, os poderes enxovalhados, a pátria fraturada

e dolorida.

Presidente presente e enérgico, medidas tomadas, prisões etc. O evento em si foi

aparentemente superado. No entanto, a fratura foi grave, exposta e ainda não calcificou. Os

acontecimentos do dia 8 de janeiro mostram um Brasil dividido e que não conseguiu unificar-se

em torno da democracia legitimamente constituída. O clima, que devia ser de entusiasmo e

alegria pelo novo momento que o país começa a viver, mostra-se tímido como se temendo que

uma nova calamidade venha a se abater sobre a recém reconstruída democracia.

A pátria está dividida e – o que é pior – aparentemente sem desejo de reconciliação e

busca pela unidade. Mais: sem esperança que tal unidade – que inclui e deseja a diversidade –

algum dia possa vir a acontecer.

Como agravante dessa fratura visibilizou-se diante de nossos olhos chocados a

tragédia do povo yanomami. As imagens dos corpos profanados pela incúria e a

ganância recordavam outras tragédias e genocídios da história da humanidade, como Auschwitz,

Biafra etc. Pátria fraturada, pátria desnutrida, pátria profanada.

No entanto, ouvir os povos originários serem defendidos pela voz de uma ministra que

pertence a uma de suas etnias acende uma esperança. Igualmente sentir que se o cruel

desmatamento cessar ou diminuir consideravelmente a floresta poderá ser salva e seus povos

poderão dela retomar posse.

Não se pode deixar de esperar. Apesar da fratura, apesar da divisão, apesar das

iniquidades. Curar a pátria fraturada, soldar seus ossos quebrados, sanar suas feridas é

responsabilidade de todos hoje. E isso pode dar-se pela intransigente defesa da democracia,

pela insistência em promover o diálogo, pelo acolhimento das diferenças e a atenção a todas as

vítimas.

Nunca talvez se fez tão necessária a cultura do encontro a que tanto convida o Papa

Francisco. Em seus dez anos de pontificado, o Brasil lhe daria um bom presente se buscasse o

óleo da tolerância e da abertura para ungir fraturas e feridas, a fim de devolver ao povo sua

identidade e seu rosto feito de alegria e confiança em dias melhores.

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