"O antissemitismo é um cancro que é preciso combater e erradicar" O Vaticano e a Palestina

"Qualquer ser humano verdadeiramente humano sonha com o fim do horror e com uma viragem para o Médio Oriente no sentido da liberdade, da justiça e da paz"
"O Papa Leão XIV saudou este “raio de esperança na Terra Santa”, animando “as partes envolvidas a que sigam com coragem o caminho traçado para uma paz justa, duradoura e respeitadora das legítimas aspirações do povo israelita e do povo palestiniano”
Com a assinatura da primeira fase do acordo de paz entre Israel e o Hamas, que deverá levar à libertação de todos os reféns em Gaza (incluindo os cadáveres dos mortos) e de cerca de dois mil presos palestinianos em Israel, qualquer ser humano verdadeiramente humano sonha com o fim do horror e com uma viragem para o Médio Oriente no sentido da liberdade, da justiça e da paz.
O Papa Leão XIV saudou este “raio de esperança na Terra Santa”, animando “as partes envolvidas a que sigam com coragem o caminho traçado para uma paz justa, duradoura e respeitadora das legítimas aspirações do povo israelita e do povo palestiniano”. Sim, “dois anos de conflito deixaram por todo o lado morte, sobretudo nos corações de quem perdeu filhos, pais”, assegurando o Papa estar, “com toda a Igreja”, próximo da “vossa imensa dor”.

Significativamente, a primeira viagem apostólica do Papa Leão realizar-se-á de 27 de Novembro a 2 de Dezembro próximo, indo à Turquia entre 27 e 30 de Novembro para a comemoração dos 1700 anos do Concílio ecuménico de Niceia, o primeiro da história do cristianismo, convocado no ano de 325 pelo imperador Constantino, e, depois, deslocar-se-á ao Líbano “pela possibilidade de anunciar de novo uma mensagem de paz no Médio Oriente” e a promoção do diálogo inter-religioso, sublinhou.
Entretanto, Leão XIV, depois das queixas da Embaixada de Israel no Vaticano criticando uma entrevista do Secretário de Estado, Pietro Parolin, nomeadamente pela “aplicação do termo ‘massacre’ tanto ao ataque genocida do Hamas do 7 de Outubro como ao legítimo direito de Israel à legítima defesa”, defendeu Pietro Parolin: “o cardeal exprimiu muito bem a opinião da Santa Sé.
Há dois anos, com esse acto terrorista, morreram mais de 1.200 pessoas”, acrescentando que “se fala de 67.000 palestinianos que também foram assassinados”, e sublinhou que a defesa deve ser proporcional. “Foram dois anos muito dolorosos. É preciso pensar em quanto ódio há no mundo.” Ora, o terrorismo e o ódio “não podem ser aceites” e lamentou os actos de “antissemitismo” no mundo: “a existência — não sei se em aumento ou não — destes actos de antissemitismo é preocupante”.
Ficam aí algumas declarações fundamentais da referida entrevista do Cardeal Pietro Parolin, Secretário de Estado do Vaticano, concedida no passado dia 7 de Outubro, que pode ser lida na íntegra em Religión Digital:
“O ataque terrorista praticado pelo Hamas foi desumano e injustificável... Foi um massacre indigno e desumano. A violência brutal contra crianças, mulheres, jovens, anciãos não pode justificar-se de modo nenhum. Foi um massacre indigno e, repito, desumano. A Santa Sé exprimiu imediatamente a sua total e firme condenação, pedindo a imediata libertação dos reféns e exprimindo a sua proximidade das famílias afectadas durante o ataque terrorista. Rezámos e continuamos a fazê-lo, como continuamos a pedir o fim desta perversa espiral de ódio e violência que corre o risco de arrastar-nos para um abismo sem retorno.”
“Hoje a situação em Gaza é ainda mais grave e trágica do que há um ano, depois de uma guerra devastadora que custou dezenas de milhares de vidas. É preciso recuperar o senso comum, abandonar a lógica cega do ódio e da vingança, rejeitar a violência como solução. Os agredidos têm direito a defender-se, mas inclusivamente a legítima defesa deve respeitar o parâmetro da proporcionalidade. Desgraçadamente, a guerra que se seguiu teve consequências desastrosas e desumanas... É inaceitável e injustificável reduzir os seres humanos a meras ‘vítimas colaterais’.”
Os episódios de antissemitismo “são uma consequência triste e igualmente injustificada: vivemos de fake news, da simplificação da realidade. E isto leva a quem se alimenta dessas coisas a atribuir a responsabilidade do que acontece em Gaza aos judeus enquanto tais. Sabemos que não é assim: também são muitas as vozes de forte dissidência que se erguem a partir do mundo judaico contra a forma como o actual governo de Israel actuou e actua em Gaza e no resto da Palestina, onde — não o esqueçamos — o expansionismo amiúde violento dos colonos quer tornar impossível o nascimento de um Estado palestiniano. Vemos o testemunho público das famílias dos reféns.
O antissemitismo é um cancro que é preciso combater e erradicar: fazem falta homens e mulheres de boa vontade, educadores que ajudem a compreender e sobretudo a distinguir... Não podemos esquecer o que aconteceu no coração da Europa com a Shoah, devemos comprometer-nos com todas as nossas forças para que este mal não volte a levantar a cabeça. Ao mesmo tempo devemos assegurar-nos de que os actos de desumanidade e as violações do direito humanitário nunca sejam justificados: nenhum judeu deve ser atacado ou discriminado por ser judeu, nenhum palestiniano por sê-lo deve ser atacado ou discriminado porque — como infelizmente se ouve — é um ‘terrorista em potência’. A perversa cadeia do ódio está destinada a gerar uma espiral que nada pode trazer de bom. Lamento ver que somos incapazes de aprender com a história, inclusive com a história recente, que continua a ser mestra de vida.”
A propósito de uma pergunta sobre o plano de Donald Trump: “Qualquer plano que implique o povo palestiniano nas decisões sobre o seu futuro e permita pôr fim a esta matança, libertando os reféns e parando a matança diária de centenas de pessoas deve ser bem-vindo e apoiado.”
“A Santa Sé, por vezes incompreendida, continua a pedir a paz, convidando ao diálogo, utilizando as palavras ‘negociação’ e ‘acordo’, e fá-lo a partir de um profundo realismo: a alternativa à diplomacia é a guerra perene, é o abismo do ódio e a autodestruição do mundo. Devemos gritar com força: paremos antes de que seja demasiado tarde. E devemos agir, fazer todo o possível para que não seja demasiado tarde. Todo o possível.”
“A Santa Sé reconheceu oficialmente o Estado da Palestina há dez anos, com o Acordo Global entre a Santa Sé e o Estado da Palestina. O Preâmbulo desse acordo internacional apoia plenamente uma solução justa, global e pacífica da questão palestiniana, em todos os seus aspectos, em conformidade com o direito internacional e todas as resoluções pertinentes das Nações Unidas, Ao mesmo tempo apoia um Estado da Palestina independente, soberano, democrático e viável, que inclua a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e Gaza. Identifica este Estado não em oposição a outros, mas capaz de viver ao lado dos seus vizinhos, em paz e segurança. Vemos com satisfação que vários países do mundo reconheceram o Estado da Palestina. Mas não podemos deixar de observar com preocupação que as declarações e decisões israelitas vão na direcção contrária, isto é, pretendem impedir para sempre o possível nascimento de um verdadeiro Estado palestiniano. Esta solução — o nascimento de um Estado palestiniano — depois do que aconteceu nos últimos anos parece-me ainda mais válida. É o caminho, o de dois povos em dois Estados, que a Santa Sé seguiu desde o princípio. Os destinos dos dois povos e dos dois Estados estão entrelaçados.”
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