Cristo es portugués (Aveiro, Braga, Coimbra, Figueira)

Ciertamente, fue galileo, pero ahora es hombre universal, y yo quiero recordarle en portugués, como muestra el libro más actual y documentado sobre el tema, editado por Anselmo Borges (en la Editorial Gradiva, Lisboa 2012), recogiendo las ponencias del congreso de Porto-Valadares, del 8-9 de octubre del año pasado (2011), como podrán recordar los lectores de mi blog (cf. días 6-16 de octubre).

Entre los participantes al coloquio y los autores del libro, además de A. Borges, hay diversos profesores y teólogos de Portugal y España (entre ellos P. Rangel e I. Allegro, Castillo y Tamayo, Queiruga y Estrada, González Faus y un servidor).

Para dar a conocer el libro, el Prof. A. Borges ha programado una serie de presentaciones en ciudades importantes del Norte de Portugal (de Coimbra a Braga, pasando por Figueira y Aveira), en los días 19 al 22, y me ha invitado a ellas, como podrá ver el lector por dos de las invitaciones que adjunto.

Con esta ocasión quiero recodar de nuevo algunos temas del curso, que trata de la Historia de Jesús, y sus relaciones con la política y el dinero, la espiritualidad y el compromiso personal, la oración y la apertura a Dios, todo ello precedido por un largo estudio mío sobre el Jesús de la historia y la historia de Jesús.

Como ayuda a los amigos portugueses, y a los que leen su idioma, quiero incluir en esta postal parte del texto que entonces presenté y que ahora evocaré a lo largo de esos días de estancia en Portugal. Espero que los castellanos/españoles intenten leer el portugués, como los portugueses leen y entienden el castellano. Buena semana a todos. Seguiré, Dios mediante, la semana que viene, con el tema del Jesús histórico, principio y centro de toda fe cristiana.

Historia de Jesus (X. Pikaza)

1. Acordo de base: Dados históricos fundamentais

Deixando de lado algumas tendências e visões que me parecem menos significativas, estas obras mostram que, no mundo académico, se conseguiu (ou se está a conseguir) um acordo de base sobre a história de Jesus, cujos elementos principais nos permitem traçar um perfil essencial da sua história:

1. Jesus foi um profeta escatológico israelita, discípulo de João Baptista no outro lado do Jordão, actuando depois na Galileia, como profeta do reino de Deus, sendo por fim executado em Jerusalém. Certamente, num segundo momento pode-se afirmar que foi um judeu marginal (Meier) ou um camponês (Crossan). Mas, em princípio, ele foi, antes de mais, um profeta do “fim dos tempos”, isto é, da chegada do Reino de Deus.

Contra os sacerdotes, que dominavam a religião judaica a partir de Jerusalém, os profetas escatológicos não sacralizavan a ordem do Templo, mas também não rejeitavam em princípio toda a lei social, mas situavam-se, e situavam tudo, perante a acção iminente de Deus, que vai transformar a ordem social e política do mundo (começando por Israel). Assim o destacou em especial E. P. Sanders (com Gnilka, Meier, Theissen-Merz e Wright), centrando Jesus no judaísmo do seu tempo, para afirmar que externamente fracassou, sendo crucificado, mas os seus discípulos reassumiram, de um modo novo, o seu projecto.

2. Foi sábio no mundo, perito em humanidade. Jesus não foi só um profeta, mas também um “sábio”. Autor de parábolas, mestre de “moral”, guia de um grupo de discípulos. Autores como Crosssan e os participantes do “Jesus Seminar”, dos Estados Unidos, apoiando-se, sobretudo, no chamado texto Q (inserido no Evangelho de Mateus e no Evangelho de Lucas) e no Evangelho de Tomé (descoberto no Egipto), deixaram para um segundo plano (sem o negar) o aspecto anterior (profético-apocalíptico) de Jesus, para apresentá-lo como um sábio universal, quase na linha dos "cínicos" gregos; ele teria sido um homem ágil em formular paradoxos e experiências contraculturais, grande filósofo da vida, autor de sentenças luminosas sobre a banalidade do mundo.

Esta nova perspectiva serve para “equilibrar” o possível excesso apocalíptico da anterior, que corria o risco de separar Jesus deste mundo, vendo-o só como profeta de uma ordem futura. Jesus falou, sem dúvida, do mundo que vem, e preparou a sua chegada, mas ocupou-se de modo intenso com este mundo, a sua forma de entendê-lo e transformá-lo. Sem dúvida, isolada em si, esta perspectiva pode acabar por ser exagerada, mas contém um elemento de verdade e deve compaginar-se com o dito anteriormente.

3. Poderoso em obras: taumaturgo e/ou carismático. Não há dúvida de que Jesus foi um homem dotado de “poderes” especiais, com uma grande capacidade de influência no seu meio, a partir das camadas inferiores (populares) da população da Galileia. No centro da vida de Jesus devem colocar-se os seus "milagres", aceites então por todos (amigos e inimigos) e entendidos pelos seus seguidores como um compromisso forte a favor da vida e liberdade dos oprimidos, isto é, como um sinal da chegada do Reino de Deus.

Os milagres (e em especial os exorcismos) situam Jesus no contexto galileu (israelita), entre os oprimidos e excluídos do seu povo, que quis acompanhar e ajudar com o seu projecto e o seu compromisso pessoal, anunciando para eles a chegada do Reino de Deus. Não podemos entrar aqui no sentido “físico e teológico” desses milagres, mas é evidente que tanto ele (Jesus) como os seus contemporâneos criam neles, ainda que os entendessem de formas diversas. É evidente que, para Jesus, os milagres (e em especial os exorcismos) eram sinais importantes da chegada do Reino, entendido como saúde, salvação e liberdade (autonomia pessoal).

4. Homem de mesa comum, pão partilhado. Jesus criou e desenvolveu um movimento que não estava só interessado na doutrina (ou na chegada futura do Reino de Deus), mas também na comunicação actual entre os homens e mulheres, pondo no centro a mesa, isto é, a comida, segundo a melhor tradição do judaísmo. Assim o mostram diversos relatos reelaborados pela tradição, em especial os textos das refeições (multiplicações do pão e dos peixes) e os que falam dos seus banquetes com pecadores e excluídos sociais. Naquela altura, a comida não era só um tema alimentar mas, antes de mais, um assunto de relação social.

O judeu distinguia-se de outros homens e mulheres pelos alimentos que comia (que deviam ser puros) e por aqueles com quem os comia (membros também do povo puro). Assim, nesse contexto, ao optar por uma forma de mesa comum e aberta, Jesus rompeu (ou começou a romper) de alguma forma com as leis sacrais dominantes (que triunfarão num tipo de judaísmo posterior), leis que distinguiam e separavam limpos, puros (judeus bons) e manchados, impuros. Ele quis comer com os “pecadores oficiais” e, de um modo especial, com os pobres e excluídos da sociedade judaica, dando assim mais importância à solidariedade humana do que ao cumprimento de uma série de normas.

5. Criticou uma forma de família e procurou uma nova de comunhão humana a partir dos mais pobres. O judaísmo era religião de irmandade social, ligada à estrutura sagrada do próprio grupo, fundado em vínculos hierárquicos de lei religiosa, económica e social, que se exprimia num tipo de bom patriarcado. Mais do que uma religião no sentido moderno do termo (experiência de interioridade sagrada), o judaísmo era uma estrutura de sacralização familiar, de modo que ao lado das normas de comida (já indicadas no parágrafo anterior) eram essenciais as normas de casamento e de organização social.

Ora bem, nesse contexto, num momento de grande desintegração (numa situação de passagem de uma economia familiar de subsistência a uma nova economia de mercantilização agrícola e clientelismo social), Jesus acabou por apresentar-se como impulsionador de um movimento messiânico, interessado na comunhão de todos, aberto, em princípio, de um modo integrador, aos diversos estratos da sociedade, em especial aos marginalizados sociais. Isso implicou um tipo de “ruptura” familiar intensa, que marcou na sua origem o sentido da sua proposta, que não se fundava em nenhum tipo de “boa transmissão de sémen” (em perspectiva genealógica), mas numa forma de comunhão inter-humana aberta a todos.

6. Foi um comprometido, no sentido radical da palavra, e a sua proposta assentou mal a muitos “bons” judeus do seu tempo. Disse-se que os judeus eram duros, defensores de um Deus impositivo, com falta de misericórdia (e que por isso o condenaram); Jesus, ao contrário, seria manso e misericordioso, testemunha e defensor de um Deus de amor. Esta visão é historicamente equivocada e cristãmente falsa. Em primeiro lugar, o próprio Jesus era judeu, e o seu movimento só se compreende e faz sentido no contexto dos movimentos proféticos e messiânicos do seu povo. Por outro lado, os judeus daquele tempo não eram legalistas sem mais, mas partidários de uma ordem social justa e dispostos ao perdão, mas na linha de nomismo pactual, exigindo assim o cumprimento de uma lei que distingue limpos, puros, e manchados, impuros (dentro de um contexto dominado pela instituição do Templo de Jerusalém).

Ora bem, nesse contexto, Jesus não aceitou (ou rompeu de facto com) um tipo de normas sacras ratificadas pela maioria religiosa, e abriu-se aos marginalizados sociais, que eram a maioria num momento de grande crise económica, cultural e familiar, como era aquela. Desse modo, a sua proposta tornou-se conflitiva e perigosa, não só para alguns considerados como “maus” (entre os quais poderíamos contar os representantes militares da ordem romana), mas também para uma parte considerável dos “bons”, isto é, dos defensores da ordem sacral e social. Por isso, Jesus foi rejeitado já pelas autoridades “religiosas” da Galileia, sendo por fim condenado como um autoproclamado “rei dos judeus”, na capital do seu povo, onde subiu para proclamar o Reino.

7. Foi um pretendente messiânico, executado em Jerusalém. Alguns autores citados (cf. Crosssan e Mack) supõem que Jesus foi fundamentalmente um sábio, um carismático, e, sem dúvida ,foi isso. Mas teve de ser algo mais, pois, caso contrário, torna-se difícil explicar a rejeição por parte das autoridades sacerdotais de Jerusalém e o facto de Pôncio Pilatos o ter condenado à morte como “rei dos judeus”. Sem dúvida, ele tinha actuado na Galileia como profeta do Reino, alguém que cura e mestre (criador de parábolas), mas a maioria dos investigadores pensam que ele subiu a Jerusalém como pretendente messiânico, isto é, como portador do Reino de Deus, ainda que possam e devam discutir-se os traços da sua pretensão.
Nesse núcleo (a sua forma de actuar em Jerusalém e as razões que o levaram à morte), centra-se grande parte da disputa actual sobre a sua vida, como continuaremos a indicar.

Neste contexto, situam-se as grandes perguntas: Com que pretensão subiu a Jerusalém pela Páscoa do ano 30? Por que foi condenado e crucificado? Parece seguro que subiu para instaurar o Reino de Deus, e é totalmente seguro que foi crucificado pelo governador romano, com a acusação de se fazer rei dos judeus (Mc 15, 26) e mandou crucificá-lo. Menos clara se torna a participação do Sinédrio ou Grande Tribunal judaico na sua condenação à morte, mas a oligarquia sacerdotal participou sem dúvida nela. Em qualquer dos casos, não se pode falar de uma condenação dos judeus como tal, pois o judaísmo encontrava-se então bastante dividido, e o próprio Jesus era judeu.

8. O seu movimento profético-messiânico manteve-se e transformou-se depois da sua morte. Jesus foi condenado, mas depois de algum tempo, apesar (ou talvez por causa) da sua condenação, os discípulos continuaram a anunciar a sua mensagem profética e a estender o seu projecto messiânico, não só na Galileia, mas na própria Jerusalém, onde alguns se estabeleceram para aguardar o seu “regresso” ou, melhor dito, a sua manifestação gloriosa, como Messias escatológico, apresentando-o cedo, talvez desde o princípio, como Filho de Deus e acrescentando que o próprio Deus o tinha “ressuscitado”.

Torna-se difícil saber o que aconteceu com o seu cadáver; não são claras as notícias que temos sobre o seu enterro, embora pareça impossível que os seus ossos, bem recolhidos e limpos tenham sido colocados numa urna funerária, como as que então tinham as famílias ricas, esperando a ressurreição no sepulcro de Talpiot (como pretende o livro de José Rodrigues dos Santos). Seja como for, alguns dos seus discípulos afirmaram que ele estava “vivo”, de tal forma que não o veneraram no túmulo, mas continuaram a proclamar a sua mensagem e dizendo que ela era verdadeira e acrescentando (ao menos em alguns grupos) que ele mesmo tinha sido elevado à glória de Deus, que o tinham “visto”, e que ele voltaria em breve para completar a sua obra.

Sobre este tema tão difícil, diga-se apenas que, no fundo dos relatos pascais, tal como foram fixados pelos Evangelhos, há uma simbolização crente: os cristãos teriam chegado à certeza da ressurreição através de uma experiência na qual Jesus se lhes manifestou interiormente como vivo enquanto o choravam (mulheres) ou reelaboravam o sentido da sua vida (Pedro, os Doze). Assim o destacaram Crossan e G. Lüdemann, respectivamente. Essa foi, sem dúvida, uma experiência desencadeante: alguns discípulos de Jesus “viram-no” depois da sua morte, como sabe Paulo (cf. 1 Cor 15, 3ss). Não é fácil fixar hoje os lugares, pessoas e dados mais antigos da experiência pascal de Jesus na Galileia e/ou Jerusalém, de Madalena e Pedro, etc.; mas é indubitável que, por revelação de Deus e/ou por imaginação humana, alguns o viram após a sua morte, recriando a sua mensagem. Nessa linha se situa a maioria dos autores, de Sanders a Meier. A certeza pascal do encontro com Jesus depois da morte exprimiu-se sobretudo na forma de visões (cf. ôphthê, 1 Cor 15, 5-7, com Mc 16, 7; Lc 24, 34, etc.) e a fé cristã acrescenta que no fundo delas se exprime a revelação definitiva de Deus.

Estes são alguns dados da investigação sobre a história de Jesus. Muitas outras coisas continuam a ser objecto de discussão, mas conhecemos com grande segurança estas que acabo de indicar, e elas apresentam-nos uma ideia fundamental da sua vida e da sua obra, do que quis e ensinou, da forma como morreu e do que continua a significar para muitos e de um modo especial para os crentes.

2. Três controvérsias mediáticas

Depois de ter fixado esses momentos fundamentais da história de Jesus, é conveniente mudar de nível e recordar algumas controvérsias mediáticas que a sua figura, na linha do dito na introdução, ao comentar o romance de José Rodrigues dos Santos, O último segredo, continua a suscitar. Aos olhos da maioria, a temática de Jesus tem estado ligada nestes anos a diversos escândalos e montagens publicitárias, mais próprias de uma sociedade de consumo que do estudo académico.

De todos os modos, embora a importância científica dessas controvérsias tenha sido (e continue a ser) pequena, quero citar algumas mais significativas, pela repercussão que tiveram e pela forma como influenciaram a opinião de milhões de pessoas, que não têm outros meios de acesso ao fenómeno Jesus. Antes, as Igrejas tinham quase o monopólio da recordação de Jesus; hoje não é assim, pois Jesus transformou-se em personagem da moda em espaços não cristãos.

1. Código da Vinci, O último segredo. Apresentei já a obra de José Rodrigues dos Santos (O último segredo, Gradiva, Lisboa 2011). Agora, quero insistir no romance de Dan Brown, O Código Da Vinci, publicado em inglês (Random House, New York 2003) e traduzido para mais de cinquenta idiomas, pois foi um dos fenómenos mediáticos “religiosos” (ou pseudo-religiosos) mais conhecidos dos princípios do século XXI, sobretudo pela sua forma de insistir no casamento de Jesus e Maria Madalena, com descendência sagrada. Em si mesma, a obra tem pouca originalidade, e ainda menos original é o filme com o seu nome (2006), mas o romance e o filme tiveram uma grande influência em milhões de pessoas.

O tema é conhecido: Jesus teria casado em segredo com Maria Madalena, da qual teria tido um filho, portador do “santo graal” (sangue real) ou, talvez melhor, do “sémen real” (isto é, messiânico e, no fundo, divino), que aparece como sinal e garantia da presença de Deus no mundo. A própria Igreja primitiva, e, depois, com mais força, a triunfadora, depois do triunfo de Constantino (século IV d.C.), convertida em maquinaria de poder, ligada ao poder político, teria ocultado esse casamento, divinizando Jesus (como homem separado, sem mulher nem filhos) e inventando (impondo) uns Evangelhos canónicos, para ocultar a verdade, escondida em diversos textos apócrifos.

Nesta concepção, a maior contribuição de Jesus para a história da humanidade teria sido o seu “sémen”, isto é, a sua descendência genealógica, entendida como potencial de “mutação humana”, contra a pretensão das Igrejas que teriam desvirtuado a mensagem de Jesus, transformando-a numa espécie de ideologia religiosa do poder. Só agora, nos princípios do século XXI, retomando tradições que se tinham mantido secretas, Dan Brown e outros “iluminados” teriam voltado a descobrir a verdade de fundo de Jesus, que se identifica com a polaridade sexual da vida, a divinização do feminino e com um tipo de mística da geração, simbolizada em Jesus.

Este romance, historicamente inverosímil e interessado (veja-se a sua forma de apresentar a “invenção” dos Evangelhos e da divindade de Jesus no século IV d. C.), conseguiu cativar milhões de leitores, mostrando o pouco conhecimento “popular” da história de Jesus. Pode-se dialogar e dissentir sobre muitos traços da história de Jesus, e em especial sobre o seu possível carácter “divino”, no plano histórico e cultural. Mas isso tem de se fazer respeitando os dados da história, sem “enganar” os leitores, na linha de uma civilização de consumo que mistura tudo e põe tudo ao seu serviço. O livro de José Rodrigues dos dados, que referi na introdução, é mais sério do que o de Dan Brown, mas corre o risco de seguir na mesma linha.

2. Evangelho de Judas. Todos os estudiosos das origens do cristianismo conhecíamos a existência de um Evangelho de Judas, citado por Santo Ireneu. Ora, a sorte quis que um dos manuscritos desse evangelho, que parecia perdido, tenha sido encontrado, guardado, vendido e revendido e, por fim, publicado com um imenso aparato propagandístico, como se por fim pudéssemos conhecer a verdade de Jesus ou, melhor dito, a mentira do Jesus “canónico”, através da verdade de Judas (que seria o verdadeiro conhecedor de Jesus). O texto crítico foi publicado por R. Kasser, M. Meyer e G. Wurst: The Gospel of Judas, together with the Letter of Peter to Philip, James, and a Book of Allogenes from Codex Tchacos, National Geographic, Washington DC, 2007. Mas antes tinham-se publicado diversas traduções e edições do livro, como a de F. García Bazán, Evangelio de Judas. Edición y e Comentario, Trotta, Madrid 2007.

O “evangelho” de Judas é um texto gnóstico, tardio, que não pode situar-se na mesma perspectiva dos Evangelhos canónicos, de modo que os contributos históricos destes são de tipo muito melhor, e, assim, não influencia a nossa visão do Jesus histórico. Este “evangelho” ou, melhor dito, este “tratado” deve inserir-se dentro da “seita” dos cainitas da segunda metade do século II d. C., que já conhecíamos por autores como Ireneu, Hipólito, o Pseudo Tertuliano ou Epifânio de Salamina, e não pode utilizar-se para iluminar ou corrigir a história de Jesus nem a do Judas histórico, conhecido pelos Evangelhos sinópticos e pelos Actos dos Apóstolos, mas para conhecer a história de um grupo especial e posterior de cristãos.
Nem todos os investigadores estão de acordo quanto ao tipo de “gnose” que está no fundo deste “tratado” (alguns dizem inclusive que não é gnóstico, mas arcôntico), mas todos afirmam que o seu contributo para a história de Jesus é quase nulo. Isso significa que temos de continuar a fundamentar-nos nos quatro Evangelhos canónicos da Igreja, não por causa de algum tipo de “dogma” religioso, mas por fidelidade histórica.

3. Ossário de Talpiot e a alegada família de Jesus. Tive que aludir a este tema na introdução deste trabalho (ao apresentar o livro de José Rodrigues dos Santos). Agora preciso algo mais o ali dito, no contexto de uma possível “clonagem” de Jesus.

No ano de 1980, descobriram-se no bairro de Talpiot, Jerusalém, uns ossários que, segundo os arqueólogos, datam do século I d.C. aproximadamente. Contêm os ossos de alguns judeus, que foram re-enterrados depois de algum tempo (uma vez consumida a carne e as partes moles), em pequenas arcas preparadas para isso, nas cercanias de Jerusalém, esperando a ressurreição, quando, segundo o livro de Ezequiel 37, 1-14, Deus juntar os ossos dos mortos, dando-lhes vida de novo. Esse tipo de enterramentos foi empregue no século I d. C., até à guerra de 56-70 e constitui um dos traços característicos do judaísmo palestino desse tempo.

Ora bem, na zona de Talpiot encontraram-se uns ossários, com inscrições em aramaico e/ou hebraico onde se diria que os restos ali contidos pertenciam a certas pessoas chamadas Jesus, Maria, Judas…. Durante anos, os arqueólogos estudaram tecnicamente as urnas, os restos e os textos e não viram nada relacionado com o fenómeno cristão (com Jesus e Maria Madalena e com um possível filho de ambos). Mas entre 2006 e 2007, o cineasta James Cameron e o seu colaborador S. Jacobovici publicaram um documentário “científico” no qual “demonstravam” que os restos dos ossários (com as inscrições) pertenceriam a Jesus filho de José (=Jesus de Nazaré), à mãe de Jesus (Maria) e à sua esposa (Maria de Magdala), com um filho de ambos, chamado Judas. Também se teriam encontrado os restos de outro irmão de Jesus e os de Mateus, um dos seus discípulos.
Esta descoberta mostraria: (a) que Jesus tinha irmãos; (b) que estava casado com Maria Madalena, (c) que ele e a família era fiéis judeus com poder, que observavam as normas rituais e tinham os meios suficientes para custear um sepulcro com ossários, e (d) que Jesus não ressuscitou “fisicamente”, pois os seus restos conservaram-se em ossários, ao lado dos restos dos seus familiares, de modo que poderia obter-se inclusive o seu ADN.

Ora bem, contra isso, a imensa maioria dos investigadores não aceitaram as “interpretações” de Cameron, nem sequer num plano arqueológico, pois os ossários e os nomes que estão pretensamente escritos neles podem e devem interpretar-se de outras maneiras, a não ser que sejam falsos (pelo menos no que se refere a um dos ossários). Por outro lado, parece quase impossível que a família de um pretendente messiânico pobre como Jesus (que anunciava o fim desta ordem histórica) se tivesse preocupado com ter um ossário em Jerusalém, pois isso custava muito dinheiro, e era desnecessário para um homem como ele. Finalmente, os dados que temos sobre o enterro de Jesus (que não foi realizado pelos seus familiares, mas por um delegado do Sinédrio) vão contra essa possibilidade dos ossários de Talpiot. Tudo parece indicar que nos encontramos perante uma montagem mediática sem qualquer fundamento.

3. Esclarecimento hermenêutico. Uma história interpretada

Voltando ao nível académico, podemos afirmar que sabemos bastantes coisas sobre Jesus, mas o que sabemos leva-nos a colocar novas questões que não se podem resolver de maneira puramente histórica (isto é, num nível de ciência), pois situam-nos, ao mesmo tempo, perante um plano de “interpretação”, isto é, de hermenêutica, como puseram em destaque os grandes filósofos que vêm tratando do tema, de F. Schleiermacher (princípios do século XIX) a H. G. Gadamer (século XX). Não há ciência sem interpretação (hermenêutica) e vice-versa: não há verdadeira interpretação sem base científica.

Ora, num plano hermenêutico, que, como disse, é inseparável da crítica histórica, embora vá para lá dela, emergem e colocam-se alguns temas que são fundamentais para a fé e para a vida de milhões de pessoas: (a) Como se relaciona Jesus com o possível Deus para quem ele apelava? (b) Como se relaciona a sua vida e mensagem com a história de Israel e o futuro da humanidade? (c) Como se relaciona a sua morte com o movimento cristão, em sentido histórico e teológico?

Estas questões, e outras semelhantes, ultrapassam o nível da pura ciência histórica, mas relacionam-se com ela. Nas reflexões que seguem, tive de misturar os dois níveis (de ciência e de interpretação hermenêutica), sabendo que são diferentes, mas que não podem separar-se nunca totalmente, pelo menos no caso de Jesus, como mostrou, por exemplo, G. Theissen no conjunto de sua obra e, de um modo especial, nos seus últimos tratados. A partir desse fundo posso e devo fixar alguns “pressupostos” que se aplicam ao estudo de Jesus:

a. Não existe uma “história pura” (Historie) de Jesus, sem interpretação (Geschichte). Não podemos conhecer Jesus de modo puro (como puro dado), mas apenas a partir de um horizonte hermenêutico, pois não há dado sem compreensão (isto é, sem um tipo de interpretação), como bem sabe a ciência (partindo da física atómica). Nesse contexto, todos os dados que sabemos sobre ele estão “interpretados”, de modo que pode (e deve) haver uma disputa ou diálogo de interpretações, que estão relacionadas não só com a “fé” ou o pressuposto hermenêutico dos diversos leitores (ou comunidades de leitores), mas também com a própria forma de acolher e valorar historicamente os “dados” que temos.

Este problema aparece desde o começo da história cristã, como mostram já os Evangelhos (que apresentam várias interpretações de Jesus, de dentro e de fora do círculo dos seus seguidores, como mostra a controvérsia sobre os exorcismos de Marcos 3, 20-30, por exemplo) e nas próprias Cartas de Paulo, escritas poucos anos após a morte de Jesus, onde encontramos já várias interpretações dela.

Neste contexto, podem e devem distinguir-se duas posições.

1. Poderia haver uma interpretação mítica de Jesus, sem “história de fundo”, isto é, uma interpretação que nega o valor histórico de todos os possíveis “dados” que se apresentaram sobre Jesus, negando inclusivamente a sua própria existência. Nesse caso, a figura de Jesus seria um puro mythos, um símbolo “historicizado”, como pode acontecer com Krishna, na religião hindu, de modo que todas as “biografias” de Jesus (a começar pela que está no fundo de Paulo ou em Marcos) seriam “invenções” de crentes que projectam a fé (mito) sobre um tipo de figura histórica inventada. Essa posição não é impossível, mas muito difícil de manter, de modo que actualmente são pouquíssimos os que negam a existência de Jesus, embora devamos ter em conta a sua posição (cf. Antonio Piñero (ed.), Existió Jesús realmente?, Raíces, Madrid 2008).

2.Mas não pode haver “fé” ou interpretação cristã de Jesus sem fundo histórico, pois isso iria contra o cristianismo, já que os cristãos afirmam que a sua fé (a sua interpretação da vida) é inseparável da história e da vida de Jesus. Nesse sentido, devemos afirmar que o cristianismo é herdeiro do judaísmo, que se define como uma “interpretação teísta da história”, contra as religiões orientais que poderiam definir-se como uma “interpretação sagrada da interioridade” (ou do próprio cosmos). Frente ao “símbolo” do eterno retorno sagrado da realidade (Mircea Eliade) ou da “identidade sagrada” do arquétipo humano (C. G. Jung), os cristãos afirmam que o próprio Jesus histórico é o Filho de Deus (isto é, o Messias) da humanidade. Por isso, se se demonstrasse que Jesus não existiu (ou que a figura que dele apresenta o Novo Testamento é radicalmente falsa) não poderia haver cristianismo (pelo menos, na sua forma actual). Nesse sentido, o cristianismo opta pelo mais difícil, interpretando o próprio Jesus da história como o Cristo da fé.

b. O conhecimento dos dados históricos de Jesus que o cristianismo exige (ou implica) variam muito, tanto no NT como na teologia posterior. Numa linha muito antiga, a poucos anos da morte de Jesus, Paulo concede menos importância (ou quase nenhuma) a muitos dados da sua história (centrando-se só no facto da sua morte messiânica). Pelo contrário, Marcos interpreta a mesma história “messiânica” de Jesus, desde o baptismo até à morte, como história “teológica” do Filho de Deus, insistindo na importância de muitos acontecimentos da sua vida (desde o baptismo até à morte).
Essa diferença de posição continua a existir na actualidade. Muitos cristãos de tipo existencialista e desmistificador como Bultmann tendem a pensar que importa apenas o “dass” de Jesus, isto é, o facto de que viveu e morreu, podendo ser interpretado como “palavra” de Deus. Outros, pelo contrário, pensam que, para sermos cristãos, devemos saber e aceitar muito mais coisas de Jesus, na linha de Marcos e dos outros Evangelhos, de modo que o cristianismo é para eles a compreensão e a actualização litúrgico-eclesial dos “mistérios da vida” de Jesus.
Situando-nos nessa segunda linha, devemos afirmar que tanto num plano de interpretação crente como num plano de estudo histórico da vida de Jesus, temos de ligar elementos científicos e hermenêuticos, o estudo dos factos e a sua interpretação, de modo que não temos uma aproximação única de Jesus, mas várias. Neste campo, contra os seus detractores, devemos recordar que o cristianismo eclesiástico (a Grande Igreja), opondo-se às tendências gnósticas dos séculos II-III, optou pela decisão mais “arriscada” e difícil, mantendo sempre o valor da história de Jesus.
Para os gnósticos (mais espiritualistas), a história de Jesus acabava no fundo por ser desnecessária, pois eles tendiam a convertê-lo num puro símbolo da interioridade ou da “história trágica” e da “redenção” da alma, na linha de algumas formas de hinduísmo, sem necessidade de história real. Contra isso, o cristianismo eclesiástico defendeu e continua a defender a identidade de base entre o Cristo da sua fé e o Jesus da história, tendo, portanto, que estudar o sentido e alcance dessa história.
1. Um cristianismo gnóstico não precisava da “figura real” de Jesus nem do correctivo da história. Aos “espirituais do conhecimento” bastava-lhes o Cristo interior, um tipo de figura divina que os homens e mulheres levam no fundo da alma e que eles devem “despertar” (despertar-se a si mesmo e conhecer) para voltar ao divino. Segundo a visão dos gnósticos mais radicais, Jesus não precisava de ter existido; o que importa é o Cristo interno e eterno que encontramos (que devemos desvelar) no fundo do alma, como expressão de um tipo de identidade sagrada e universal da vida.

2. Pelo contrário, a Grande Igreja (isto é, a Igreja oficial, tão criticada pelos nossos romancistas: Dan Brown e José Rodrigues dos Santos), a começar pelos autores dos Evangelhos (a partir de Marcos), optou por manter a “história” de Jesus, identificando assim a religião (o cristianismo) com uma interpretação “teísta” (religiosa) da história real de Jesus, da sua mensagem concreta e da sua morte. Os que criticam a Igreja por ter falsificado a história de Jesus (antes ou depois de Constantino) podem ter razão em alguns pormenores, mas têm um equívoco de fundo, pois essa Igreja decidiu valorizar e manter a história de Jesus, contra os seus detractores.
Nesse sentido, a “experiência” da Páscoa não pode entender-se como uma negação, mas antes como uma valorização da história de Jesus. Os cristãos afirmam que através deles continua a agir o mesmo Jesus da história, que ressuscitou e se manifesta por meio deles. Nessa linha, a experiência pascal dos cristãos não implica uma fuga da história (negar a história, para ficarmos com o Cristo eterno da fé), mas uma descoberta do valor “transcendente” (definitivo, messiânico) da história de Jesus, num plano humano completo e pessoal.

A Grande Igreja, com os seus possíveis riscos, continuou a manter a necessidade de um estudo crítico da história de Jesus, pois só conhecendo de um modo fundamental aquilo que ele foi, o que disse e procurou, a forma como morreu, ela pode afirmar que esse Jesus concreto é o Cristo (isto é, está vivo e actua no mundo através dos cristãos). Nessa linha, podemos acrescentar que o estudo da figura histórica de Jesus é muito importante para a ciência, que procura entender todas as coisas observáveis do mundo, mas é ainda mais importante para a fé de uma Igreja que continua a afirmar que Jesus é o Cristo.

Poderia haver ciência sem história de Jesus. Mas não pode haver Igreja nem cristianismo na sua forma actual, sem o estudo e a aceitação do Jesus da história, tal como o puseram em relevo os Evangelhos, na segunda metade do século I d. C. Pode haver história sem fé em Jesus; mas não pode haver fé no Jesus cristão sem afirmação da sua história. Nesse sentido, diferentemente do que pode suceder em outras religiões (especialmente nas orientais), a verdade mesma do cristianismo exige um estudo da história de Jesus, como continuaremos a mostrar.

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