"Retirar esse texto da celebração litúrgica" “As mulheres sejam submissas aos maridos”

“As mulheres  sejam submissas aos maridos”
“As mulheres sejam submissas aos maridos”

São Paulo deu um contributo decisivo para a emancipação feminina

A partir daqui, compreende-se que Deus se manifesta, mas nunca directamente, sempre e só indirectamente. Jamais alguém viu ou falou directamente com Deus

Os livros sagrados – a Bíblia, o Alcorão e todos os outros – não são ditados divinos e precisam, por isso, de uma interpretação histórico-crítica e de uma mediação hermenêutica

O alarido todo não pode ser atribuído à “talibona” que fez a leitura na Eucaristia. A culpa não é dela, mas dos responsáveis que deveriam, embora continuando na Bíblia, retirar esse texto da celebração litúrgica

Sobre o sexo, as mulheres, as religiões e a Igreja já escrevi aqui muitas vezes. Também em livros que publiquei, incluindo o próximo, O Mundo e a Igreja. Que Futuro?, que espero esteja nas livrarias em finais de Outubro. Retomo hoje o tema muito rapidamente, por causa do “alarido” que houve nos média provocado por uma leitura na Eucaristia de um Domingo passado, transmitida pela televisão pública. Algum esclarecimento é devido.

1. O que se passou é que foi feita uma leitura bíblica a dizer: “As mulheres sejam submissas aos maridos, como ao Senhor, pois o marido é o chefe da mulher, como Cristo é o Chefe da Igreja”.

Previno que o texto é da Carta aos Efésios, atribuída a São Paulo, mas a autoria realmente não lhe pertence. Aliás, é preciso dizer que, no cristianismo, com Jesus, que escandalosamente tinha discípulos e discípulas, São Paulo deu um contributo decisivo para a emancipação feminina: “Não há judeu nem grego; não há escravo nem livre; não há homem e mulher, porque todos sois um só em Cristo Jesus”, escreveu na Carta aos Gálatas; e na Carta aos Romanos descreve Júnia como ilustre entre os Apóstolos.

Cásate y sé sumisa

2. Todas as religiões se entendem a si mesmas como reveladas. A pergunta é: como sabem os crentes que Deus falou?

A religião tem sempre na sua base uma interpretação humana da realidade, da única realidade que há, comum a crentes e a não crentes, e que é ambígua. Para o crente, a realidade mesma, para a sua compreensão adequada, aparece-lhe como incluindo uma Presença que não se vê em si mesma, mas implicada no que se vê. Mediante certas características -- a contingência radical, a morte e o protesto contra ela, a exigência de sentido último --, a própria realidade se mostra implicando essa Presença divina como seu fundamento e sentido últimos. Assim, como escreve A. Torres Queiruga, na estrutura íntima do processo religioso, “não se interpreta o mundo de uma determinada maneira porque se é crente ou ateu, mas é-se crente ou ateu porque a fé ou a não crença aparecem ao crente e ao ateu, respectivamente, como a melhor maneira de interpretar o mundo comum”.

A fé, no seu nível próprio, tem razões, de tal modo que está sujeita à verificação. Aí, o agnóstico dirá que não vê razões para poder decidir-se. O ateu julga que as razões contrárias são mais fortes e, por isso, não crê. Para o crente, a “hipótese religiosa” é a que melhor esclarece as experiências e questões radicais postas pela realidade e pela existência: a contingência, as perguntas últimas pela vida e pela morte, a esperança, a exigência ética, o sentido da existência e daHistória.

3. A partir de uma experiência religiosa de fundo por parte do profeta ou do fundador religioso, desencadeia-se um processo vivo que dá origem a tradições religiosas ou religiões que acabam por sedimentar ou cristalizar em livros sagrados, considerados “revelados”. Os novos crentes não aceitam a verdade da fé por via autoritativa. Eles próprios podem comprová-la. A. Torres Queiruga, o teólogo que de modo mais penetrante tentou esclarecer esta questão, chamou a esta compreensão “maiêutica histórica”. Na verdade religiosa, há os profetas e os fundadores das religiões, que foram os primeiros a tomar consciência da verdade. Mas, após essa descoberta, ouvindo-os e acompanhando-os, outros se podem dar conta por si mesmos da mesma verdade.

Biblia

A partir daqui, compreende-se que Deus se manifesta, mas nunca directamente, sempre e só indirectamente. Jamais alguém viu ou falou directamente com Deus. Por isso, os livros sagrados não são um ditado divino – são Palavra de Deus em palavras humanas. Os seus autores escreveram e os seus leitores lêem com uma pré-compreensão, isto é, no quadro de pressupostos históricos e culturais, interesses e expectativas. Portanto, a sua leitura nunca pode ser literal, pois implica sempre uma interpretação.

Torna-se, pois, claro que os livros sagrados – a Bíblia, o Alcorão e todos os outros – não são ditados divinos e precisam, por isso, de uma interpretação histórico-crítica e de uma mediação hermenêutica, não podendo de modo nenhum ser engolidos na sua totalidade de modo acrítico. É preciso lê-los, atendendo à língua original, ao género literário, aos destinatários, ao contexto...

A verdade de qualquer livro sagrado só pode acontecer na compreensão de que o seu horizonte é a salvação. Eles são livros religiosos voltados para a oferta de libertação, dignificação, salvação.

Se toda a religião tem como ponto de partida e “definição” a pergunta essencial: o quê ou quem traz libertação e salvação?, então a libertação-salvação total é que constitui o fio hermenêutico decisivo para a interpretação correcta dos livros sagrados na sua verdade final. Só a esta luz é que eles são verdadeiros. A sua leitura nunca pode ser fragmentada, já que só no seu todo é que se reclamam da verdade. Em tudo quanto neles se encontra de menos humano ou até de desumano revela-se o que Deus não é.

À luz da libertação final, que implica uma antropologia e uma teologia negativas, os livros sagrados são também a história da tomada de consciência por parte dos humanos do que Deus, o Sagrado, não é e do que eles, para se tornarem verdadeiramente humanos, não devem ser.

4. Conclusão: O alarido todo não pode ser atribuído à “talibona” que fez a leitura na Eucaristia. A culpa não é dela, mas dos responsáveis que deveriam, embora continuando na Bíblia, retirar esse texto da celebração litúrgica.

Lectora

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