"E nem Francisco abriu a porta à ordenação presbiteral das mulheres" Mudança na Constituição da Igreja

"É confrangedor e mesmo horripilante saber que há ainda quem pregue e até ensine na catequese que Jesus veio ao mundo, enviado por Deus, para ser crucificado como vítima expiatória pelos pecados"
"Na realidade, foi o contrário que se passou. Jesus anunciou exactamente o contrário. Este é o seu Evangelho, notícia boa e felicitante: Deus é bom, Abbá (querido Papá), Pai/Mãe"
"Para voltar a Jesus, impõe-se uma mudança na Constituição da Igreja, uma verdadeira revolução"
"Para voltar a Jesus, impõe-se uma mudança na Constituição da Igreja, uma verdadeira revolução"
| Anselmo Borges Padre e professor de Filosofia
Estes dias desde a morte do Papa Francisco em que os meios de comunicação social estiveram concentrados no Vaticano, infelizmente muitas vezes nem sempre pelas melhores razões cristãs no sentido fundo da palavra, pois lembrava-se por vezes mais a pompa e o fausto das cortes imperiais dos antigos impérios, deveriam ter sido uma ocasião para reflectir de modo fundo sobre o cristianismo na sua profundidade essencial, a melhor mensagem que alguma vez chegou à Humanidade na sua História e, dessa reflexão, tirar necessárias e urgentes conclusões, para voltar precisamente ao essencial.
1. É confrangedor e mesmo horripilante saber que há ainda quem pregue e até ensine na catequese que Jesus veio ao mundo, enviado por Deus, para ser crucificado como vítima expiatória pelos pecados. Por causa do pecado dos primeiros pais, a Humanidade tinha uma dívida infinita para com Deus, que Jesus pagou na cruz, e assim Deus pôde aplacar a sua ira e reconciliarse com a Humanidade.

Em relação a este Deus bárbaro e macabro, pior do que qualquer ser humano decente e que faz lembrar os deuses a quem as pessoas sacrificavam os seus filhos primogénitos como vítimas para os aplacar e implorar bens e graças, eu pessoalmente sou ateu.
2. Na realidade, foi o contrário que se passou. Jesus anunciou exactamente o contrário. Este é o seu Evangelho, notícia boa e felicitante: Deus é bom, Abbá (querido Papá), Pai/Mãe. E todos são seus filhos e filhas e ele só quer o bem deles, a sua alegria, felicidade e realização plena de todos. Essa foi a mensagem de Jesus por palavras e obras, seguindo-se que, se todos são filhos e filhas, todos são irmãos e irmãs e devem agir em consequência…
Era evidente que essa mensagem ia contra os interesses do Templo. Jesus enfrentou concretamente o sacerdócio judaico — parece que havia uns 20 000 sacerdotes e levitas e Flávio Josefo refere que numa páscoa degolaram 255 600 cordeiros. Segundo Jesus, é preciso aprender que o que Deus quer é justiça e misericórdia, dizia-lhes: "Ide aprender: Deus não quer sacrifícios rituais de vítimas, quer justiça e misericórdia". A mensagem de Jesus também ia contra os interesses de Roma, pois os impérios não existem para a fraternidade, mas para a exploração...
Jesus sabia, portanto, que punha em risco a sua vida, mas não se acobardou. Pelo contrário, foi até ao fim para dar testemunho da Verdade e do Amor. Assim, foi julgado e condenado à morte e morte de Cruz: o horror pura e simplesmente. Ele, o inocente, foi vítima não de Deus, mas dos homens, vítima de um assassinato. Deus, porém, ressuscitou-o: Jesus, na morte, não encontrou o nada, mas a plenitude da vida, e os discípulos acreditaram e foram anunciar a Boa Nova e surgiram comunidades de cristãos e cristãs. Eles amavam como Jesus mandara: “Dou-vos um mandamento novo: amai-vos uns aos outros como eu vos amei.”. E reuniam-se em banquetes festivos e fraternos para recordar a Última Ceia e outros banquetes de Jesus, a sua mensagem, a sua morte, a sua ressurreição, celebrar e aprofundar a fé e a esperança, animar a caridade, o amor... E a celebração acontecia na casa de um cristão ou cristã com uma casa maior e melhor, e quem presidia era o dono ou a dona da casa.
3. Com o tempo (século III) — quem explicou isso bem foi Herbert Haag, Professor da Universidade de Tubinga, talvez o maior exegeta do século XX, que tive o privilégio de ter como querido amigo —, também porque os cristãos iam sendo acusados de ateus por não oferecerem sacrifícios à divindade, a Eucaristia foi perdendo esse carácter de banquete festivo e fraterno e surgiu a sua interpretação como sacrifício — o manual de Teologia por que estudei em jovem ainda falava na Missa como “mactatio mystica Christi” (matação, imolação mística de Cristo, discutindo-se se a imolação era real, moral, sacramental) e, quando presentemente nas igrejas se olha para os altares laterais, vem à lembrança o tempo ainda recente em que vários sacerdotes iam oferecendo, só com um acólito, que nada entendia, até porque era em latim, o “santo sacrifício da Missa” por diversas intenções, e ainda não se acabou com o absurdo dos “Trintários de Missas” — e, com a interpretação da Eucaristia como sacrifício de expiação pelos pecados, começou a ordenação sacerdotal e, assim, na Igreja apareceram duas classes: o clero com todos os seus privilégios e os leigos. Totalmente contra o que Jesus queria: "sois todos irmãos". E nem Jesus nem os Apóstolos ordenaram sacerdotes. Mas, com a ordenação sacerdotal, apareceu não só uma Igreja com duas classes — o clero e o povo —, mas foi-se também impondo o celibato, e as mulheres, que antes também tinham presidido, foram excluídas, por causa da impureza ritual…
E nem Francisco abriu a porta à ordenação presbiteral — intencionalmente, não utilizo a palavra sacerdotal — das mulheres nem à ordenação de homens casados e ao fim da lei do celibato…
4. Para voltar a Jesus, impõe-se uma mudança na Constituição da Igreja, uma verdadeira revolução, que implica, como explico longamente no meu mais recente livro: O Mundo e a Igreja. Que Futuro?, "pôr fim à ordenação de sacerdotes".
Evidentemente, na Igreja — não sou anarquista — haverá, como desde o início houve, funções, ministérios e serviços ordenados, que até podem ser temporários, de homens e mulheres, mas não com a ordenação sacerdotal, com ordens sacras, o que é completamente diferente.
De facto, segundo a doutrina oficial, a ordenação sacerdotal implica uma transformação ontológica do ordenado, fazendo dele um "alter Christus", "outro Cristo", só ele podendo presidir à Eucaristia e perdoar os pecados na confissão. Com a ordenação sacerdotal, a Igreja não tem reforma possível, por causa da sua divisão automática em duas classes, repito: clero e povo, de tal modo que, quando se fala em Igreja, o que se está normalmente a referir é menos de 1% da Igreja: a chamada hierarquia. E Jesus tinha dito: "sois todos irmãos".
E aí estão a peste do clericalismo e a pompa e o luxo destes dias. E, quando se entrou em conclave para eleger o novo Papa, lá esteve aquele “extra omnes”: “fora todos”, todos os que não pertencem ao conclave, ao qual só pertence o topo da hierarquia, aliás num sistema endogâmico, pois aqueles 133 cardeais eleitores são purpurados criados por Papas anteriores, portanto, evidentemente, sem nenhuma mulher, mesmo se mais de metade dos católicos são mulheres...
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