Pena de morte ou tortura?

Maria Clara Lucchetti Bingemer
10 may 2024 - 20:29

Tantas coisas pavorosas acontecem hoje em dia nas guerras em curso – Oriente

Médio e Ucrânia – que outras notícias igualmente ou mais assustadoras podem passar

despercebidas. A meus olhos não passou desapercebido as notícias que cercaram a

última execução de um prisioneiro no estado do Alabama com um novo método letal: a

asfixia por gás nitrogênio.

O episódio sucede quando o país começava a viver um declínio da pena de morte.

Dados da grande imprensa informam que segundo o relatório do Centro de

Informações sobre a Pena de Morte (DPIC), apenas cinco estados realizaram

execuções e sete emitiram novas sentenças de morte em 2023. Isso representa o

menor número em 20 anos. Além disso, pela primeira vez, diz o documento, uma

pesquisa Gallup relatou que é maior o número de estadunidenses que acreditam que a

pena de morte é administrada de maneira injusta (50%) do que justa (47%),

questionando assim a existência mesmo deste tipo de punição jurídica. Quando os

ativistas e as ONGs pela paz viam com otimismo esse declínio da pena capital no

país, a história da condenação de Kenneth Smith e sua execução no último dia 26 de

janeiro levanta novas e terríveis questões sobre o problema.

A trajetória de Kenneth Smith até a morte foi dolorosa e cheia de idas e vindas. Sua

condenação radica no assassinato de Elizabeth Sennett, em 1988, por encargo do

marido da mesma que pretendia apossar-se do montante de seu seguro e viver com a

amante com quem já se relacionava naquela época. Para tal, contratou pessoas e

entre elas se encontrava Smith. No decorrer das investigações, os culpados foram

julgados e presos exceto o mandante que se suicidou uma semana após o

assassinato, quando constatou que a investigação chegaria a seu nome.

Kenneth Smith foi julgado duas vezes e no segundo julgamento obteve por 11 votos a

1 a recomendação de prisão perpetua. Essa sentença, no entanto, foi anulada por um

juiz que o condenou à morte. Passou anos no corredor da morte quando em novembro

de 2022 foi levado à execução por injeção letal. Porém a injeção não conseguiu

penetrar com seu líquido letal no corpo de Smith. Os executores da pena não

conseguiram perfurar e penetrar em uma veia sequer do condenado após várias

tentativas em inúmeras partes do corpo. Estando submetido a este cruel e angustiante

procedimento por várias horas, Smith viu expirar o prazo para sua execução e ver a

mesma anulada. Voltou ao corredor da morte porque o estado não conseguira matá-lo

pelo método utilizado nos cárceres do Alabama com essa finalidade.

Foi então que se cogitou perpetrar sua execução pelo método de hipoxia de

nitrogênio, ou seja, aplicar-lhe uma máscara no rosto que o asfixiasse pela emissão do

gás de nitrogênio. Informam as fontes da justiça do Alabama que o condenado havia

concordado e até solicitado que lhe fosse aplicado esse método diante do fracasso do

anterior. Mas quando foi promulgada a decisão da execução por nitrogênio, tentou

impugnar através de seus advogados o protocolo, alegando que esse lhe infligiria uma

sobrecarga de dor, e poderia não mata-lo mas provocar-lhe um derrame cerebral que

o deixaria em estado vegetativo se falhasse como o anterior.

Os apelos de Smith não foram atendidos e a execução aconteceu em 26 de janeiro

último. Parece uma história de filme de terror, mas trata-se de uma história real. Um

homem foi torturado pelo estado que deveria custodiá-lo e reabilitá-lo a partir do crime

cometido. Torturado até a morte. Física e mentalmente. O mesmo estado que não teve

competência para executá-lo por injeção letal enviou-o de volta à cadeia, onde ele

ficou por mais um longo tempo antes de então ser submetido a um método de

execução utilizado por primeira vez cujos riscos e sequelas não se podiam prever.

Efetivamente as testemunhas da execução, entre eles a esposa e os filhos do

condenado relataram que Smith teve dois a quatro minutos de convulsões e cinco

minutos de respiração forte, antes de morrer. Ao despedir-se deles, Smith teria dito:

“esta noite Alabama faz com que a humanidade dê um passo para trás. “

Uma parte da humanidade, na qual desejo e espero estar incluída, acrescenta às

palavras de um homem às portas de uma morte infligida de maneira absurdamente

cruel: “não se trata apenas de um passo para trás, meu irmão Kenneth Smith. Trata-se

de uma negação da própria identidade da mesma humanidade.” A matança

programada de um ser humano por outros que decidem dia e hora em que isto

acontecerá é a negação da própria condição humana enquanto corpo animado pelo

“nefesh” (espírito) divino.

Qual a diferença para os campos de extermínio nazistas e os gulagui? A quantidade?

Não certamente a monstruosidade do ato cometido. A humanidade dá muitos passos

atrás com esta execução e com todas as outras que ainda persistem em acontecer em

um mundo que se pretende desenvolvido e regido pela revolução tecnológica. Esta

humanidade está perdendo – e muito – para outros seres vivos, não humanos, que só

matam para se alimentar quando têm fome.

Não à toa o Papa Francisco declarou que a pena de morte é inaceitável em qualquer

caso, porque consiste em um ataque à inviolabilidade e á dignidade da pessoa. Por

isso retirou do Catecismo da Igreja Católica a admissão do uso da pena capital em

alguns casos como o de um tirano que ameaça a vida de muitas pessoas. Em seu

discurso ao congresso estadunidense em 2015, Francisco falou claramente sobre a

incompatibilidade da pena de morte com a fé cristã. Pelo visto alguns responsáveis

pela justiça daquele país não consideraram as advertências do Papa. Seguem não

apenas aplicando a pena de morte às esferas de sua responsabilidade, mas

igualmente refinando-a com requintes de horror, fazendo-a muito mais semelhante à

tortura do que à prática da justiça.

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