Ser humano: ser sexuado

Maria Clara Lucchetti Bingemer
10 may 2024 - 20:30

A sexualidade é uma dimensão constitutiva do ser humano e, ao mesmo tempo, algo

que sempre o questionou ao longo dos tempos. Por atingir todas as dimensões da

identidade humana, levantou questões conflitivas e críticas, assim como inspirou as

mais belas produções poéticas e artísticas da humanidade. Com relação à religião, a

sexualidade tem uma história de diálogo e confronto que até hoje marca a vivência de

fé das pessoas e das comunidades religiosas.

Alguns autores refletiram sobre essa dimensão antropológica fundamental, seja na

história geral ou na história específica do cristianismo, religião predominante no

Ocidente. O britânico Peter Brown em seus inúmeros e importantes trabalhos ressalta

a importância da questão da sexualidade na complexa construção do poder dentro da

organização do Cristianismo. Em sua reflexão encontram-se elementos tais como a

relação entre sexualidade e espiritualidade, incluindo aí tudo que diz respeito à

continência sexual, jejum, ascese e penitência. Um de seus argumentos é que a

desconfiança dos Padres da Igreja em relação à sexualidade nos primeiros séculos foi

uma reação contra a libertinagem do Império Romano tardio, onde o cristianismo viveu

seus primeiros momentos e se organizou como proposta.

Santo Agostinho foi um dos pensadores cristãos que desenvolveu o tema da religião e

da sexualidade. Seus escritos trouxeram algo novo à visão dominante nos círculos intraeclesiais. Tratou de questões delicadas, como a virgindade, castidade, fornicação e

casamento elaborando elementos de uma moral sexual cristã. Seu pensamento

influenciou e moldou teoria e prática da Igreja. Da mesma forma, a visão agostiniana,

embora tenha predominado até os dias de hoje na teologia moral e no pensamento

eclesial, recebeu diferentes interpretações ao longo do tempo.

A Reforma Protestante trouxe novidades significativas para a compreensão da

sexualidade que existia na Idade Média. A recuperação do significado original da prática

da castidade e da virgindade enraizadas no texto bíblico e com ela a valorização e a

aceitação do casamento tanto para leigos quanto para clérigos, foi uma das mudanças

mais significativas que a Reforma introduziu na vida cristã nas fronteiras entre a Idade

Média e a Modernidade. Nesse aspecto, Martinho Lutero faz uma importante

contribuição para a compreensão teológica cristã da sexualidade humana, ampliando-a

para além de sua compreensão anterior.

A corrente dominante no Ocidente hoje concebe a sexualidade como um direito

individual: entre adultos que consentem com o contato e a relação sexual entre si e

vivem um código em que a libido é lícita. A moral cristã, diante dessa concepção, adota

uma posição contracorrente, ao continuar sustentando que existem leis naturais e

divinas - que também seriam objetivas e cognoscíveis - que delimitam o espaço do

permitido e do proibido no que diz respeito à sexualidade. O consentimento individual

não seria suficiente para delimitar uma prática proibida por essas leis. Devido a isso,

muitos cristãos se sentem rejeitados ou excluídos de uma Igreja que lhes propõe

práticas nas quais eles não se veem contemplados. Ou então sentem-se

desconfortáveis diante de uma concepção quase que meramente jurídica da prática da

sexualidade que não se coadunam de forma positiva com a vivência existencial da fé e

a experiência espiritual da Transcendência Divina como experiência de amor e

misericórdia.

Diante disso, é urgente voltar, parece-nos, ao texto bíblico do relato da Criação que

possibilita uma reflexão teológica sobre a condição humana sexuada. O texto do

Gênesis diz que Deus criou o homem macho e fêmea: "Ele os criou à imagem de Deus

e os criou macho e fêmea "ish ischah” (Gn 1:27), mas é preciso observar que a

sexualidade no texto bíblico não se refere apenas à genitalidade. A diferença sexual

afeta todos os elementos da corporeidade humana. Ela não afeta apenas o corpo, mas

caracteriza o ser humano como um todo. Não são as glândulas que têm demandas

sexuais, mas todo o ser humano. Os apetites sexuais não são direcionados apenas para

os órgãos sexuais do outro sexo, mas para a outra pessoa como um todo, como

portadora da determinação sexual. A diferenciação sexual não se limita à esfera

biofísica, mas também atinge a esfera psicológica, pois é um constitutivo antropológico.

A sexualidade é uma parte ineludível de todo ser humano, mas o ser humano não se

reduz à sua sexualidade. É Eros, não logos. e encontra a raiz de sua compreensão no

impulso vital que lança o indivíduo humano em direção ao outro por meio do desejo, da

proximidade, do contato, da comunicação, a fim de alcançar a comunhão.

A sexualidade orienta o homem em direção à alteridade: "Não é bom que o homem

esteja só; eu lhe darei uma companheira como ele" (Gn 2:18). O ser humano único

encontra sua plenitude na enriquecedora diferença e reciprocidade a ele dadas pelo

outro. Essa reciprocidade no amor é expressa na doação sexual: "Adão conheceu Eva,

sua mulher" (Gn 4:1). A diferenciação sexual na verdade pertence à semelhança do

humano com o divino, ou seja, ela o torna capaz de amar e ser amado. Como parte da

criação, a sexualidade, por um lado, é distinta da divindade e, por outro lado, é

caracterizada como a vontade e a marca de Deus em Sua criação.

O ser humano é sexuado e isso revela sua relacionalidade marcada pela alteridade.

Essa alteridade que o configura em sua identidade constitutiva é o que revela sua

vocação para ser a imagem de Deus, que é comunhão em seu ser mais íntimo. O próprio

termo - comunhão - fala da identidade de Deus Pai, Filho e Espírito Santo e da

identidade do ser humano, criatura desse Deus, criado à sua imagem e semelhança.

Ser humano é ser um filho da comunhão e não da solidão, é ser chamado e destinado

à comunhão.

A criatura humana é relacional e transcendente, aberta ao mundo, aos outros, a Deus. É

criatura destinada à comunhão. Por isso não se pode falar das núpcias entre o barro e

o sopro, entre a terra e o céu, entre a argila e o espírito sem evocar a sexualidade. Esta

não deve ser temida ou rejeitada como perigo ou lugar de tentação, mas acolhida como

constitutiva de humanidade e caminho de plenitude.

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