Religião: tolerância ou respeito reverencial?

A religião possui uma força política poderosa. No mundo contemporâneo, é uma força
central, talvez a força central que mobiliza as pessoas… Em certas situações vitais, o que em
última análise conta não é tanto a ideologia política nem os interesses econômicos, mas as
convicções religiosas de fé, a família, o sangue e a doutrina. É por elas que as pessoas combatem
e estão dispostas a dar suas vidas.
Muitas vezes, no entanto, a religião é geradora de conflitos. Intolerância, fechamento
à diferença do outro, preconceito acontecem e provocam debates acalorados, atitudes
extremas ou até mesmo tragédias.
Vamos muito longe com as palavras? Somos radicais em nossa avaliação? Pois não é
de tragédia que se trata o atentado do qual foi vítima o escritor Salman Rushdie há poucos dias,
nos Estados Unidos? O ensaísta de ficção britânico, de origem muçulmana indiana, criou-se em
Mumbai e estudou na Inglaterra. Escreve livros de grande beleza e é muito bem-sucedido como
escritor. Seu estilo mistura mito e fantasia com a vida real, e tem sido ligado por alguns críticos
de sua obra ao realismo mágico, cujo protagonista latino-americano era Gabriel Garcia
Márquez.
O que catapultou Rushdie para as páginas de todos os jornais e um lugar central na mídia
foi a publicação, em 1989, do romance “Versos Satânicos”. Trata-se de um texto complexo,
inspirado em acontecimentos reais, como o ataque contra um avião da companhia aérea Air
India, em 1985, e a Revolução Iraniana, de 1979. Ao lado destes, figuram referências biográficas
sobre o próprio autor, bem como acontecimentos históricos inspirados na vida do profeta
Maomé, ora lendários, ora imaginários.
O tema central pode ser encontrado em outras obras do autor: o desenraizamento do
imigrante dividido entre sua cultura de origem, a partir da qual se afasta, e a cultura de seu país
anfitrião, que ele ansiosamente deseja adquirir, e a dificuldade desta metamorfose. Aparecem
como cenários a India e a Grã-bretanha, o passado e o presente, o imaginário e a realidade. E
aborda temas como fé, tentação, fanatismo.
O governo iraniano de então considerou a escrita de Rushdie ofensiva ao profeta, uma
blasfêmia contra o Islam, e o autor um apóstata por se declarar no livro desiludido com o Islam.
Pronunciou então uma fatwa – sentença – ordenando sua execução. O aiatolá Khomeini,
suprema autoridade religiosa do Irã, determinou que todos os "muçulmanos zelosos" tentassem
assassinar o escritor, os editores do livro que soubessem dos conceitos ali descritos e quem
tomasse conhecimento de seu conteúdo, conforme a fatwa.
Rushdie foi forçado a viver no anonimato por muitos anos. A fatwa contra ele foi
renovada em 2005 por Ali Khamenei, sucessor de Khomeini.
Em 12 de agosto, na pequena cidade de Chautauqua, Estado de Nova York, EUA, Rushdie
foi alvo de um ataque a faca, sendo atingido no rosto, no pescoço e em várias outras partes do
corpo. O agressor, Hadi Matar, de 24 anos foi preso em flagrante e declarou-se inocente. O
escritor sobreviveu, mas permanece em estado grave: fala com dificuldade, embora haja
esperança que se recupere das feridas sofridas.
A sentença da qual Salman Rushdie vinha se escondendo há tantas décadas, acabou
atingindo-o. Homem pacífico, o escritor é vítima do desrespeito à liberdade de expressão e de
intolerância quanto à prática religiosa.
Agora o golpe foi desfechado por um islâmico contra outro islâmico. Mas no passado
quantas vezes representantes de religiões diferentes se atacaram entre si. Nós, cristãos, temos
que bater no peito e pedir perdão pelas muitas vezes em que fizemos o mesmo. Os outros
monoteísmos igualmente.
Nada se constrói com intolerância e fechamento à diferença do outro, que pode estar
em sua etnia, em seu gênero, em sua raça ou em sua religião. Em um mundo tão violento e
conturbado como este em que vivemos, há que cultivar não apenas a tolerância, mas um
reverencial respeito pelo outro e tudo que a ele diz respeito. De maneira muito especial, pela
religião que ele professa, que dá sentido a sua vida e é motivadora de suas posições éticas, de
seus compromissos concretos e transformadores da realidade.
Que Salman Rushdie possa recuperar-se e seguir escrevendo em paz. E que todos e cada
um de nós possamos aprender a respeitar, reverenciar e aprender a religião do outro.

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