A cara do real

Como o viver humano é atingido por crise congénita, importa dar conta da realidade com os seus contrastes, não viver adormecidos mas perceber o dinamismo crítico diante do que gostamos e do que rejeitamos. Uma das grandes encruzilhadas que cada pessoa enfrenta ao longo da sua vida situa-se na aceitação dos seus limites, no entendimento lento dos que a rodeiam, no acolhimento e reacção perante contrariedades e adversidades provindas das circunstâncias que enquadram o sítio de cada um.

O modo como cada ser humano reage a estes elementos, além de ser comandado pelos genes e pelo tipo de educação recebida, tem muito a ver com a filosofia de vida que absorve do meio onde cresce e dos princípios religiosos que orientam e pautam os seus comportamentos.

Para simplificar, vejo duas grandes correntes que estão a conquistar quem não estiver prevenido. Por um lado, espalhou-se entre nós uma literatura tipo Paulo Coelho, agradável, consoladora, dos ditos "pensamentos positivos", uma visão leve, um discurso ligeiro que adoça a vida e a retira da realidade. Por outro, a atribuição ao diabo, a influências demoníacas, de tudo o que corre mal ou se apresenta como dificuldade, ganha muitos adeptos e os pedidos de exorcismos aumentam. Há quem entre no fabrico de místicas orientais ou recorra a técnicas psicologizantes.

Para encarar a realidade e mudá-la requer-se lucidez e imaginação. Só assim se sai da visão rotineira do "sempre assim se fez" ou se evita a costumada inoperatividade do "não há nada a fazer". É preferível ser arriscados do que ser riscados. Correr alguns perigos é preferível a ser inútil e parasita, reduzindo a responsabilidade e atirando para outros o que nos compete.

Quando a democracia real não passa por cidadania interventiva e não está a favor da base, a vida sindical está domesticada, o darwinismo social foi canonizado, os cristãos perderam o sentido profético, a vida política estagna raquítica sem utopias, não são nem pacifismos baratos, nem diabolizações caras que respondem ao presente. A falta de realismo embala-nos numa sociedade aparente e indiferente. A vida assim começa a ser aborrecida e vazia, ligeira ou demasiado pesada, com drogas ou com culpas de terror. Reduzem-se a inúteis religiosos debilmente crentes ou cínicos insolidários.

Quem nos aponta um projecto viável, exemplar e nos convoca para uma sociedade com povo, com história, com esperança?

D. Carlos Azevedo, Bispo Auxiliar de Lisboa
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